domingo, agosto 14, 2011

UGO GIORGETTI - Lições da Europa


Lições da Europa
UGO GIORGETTI
O Estado de S.Paulo - 14/08/11

Alguma coisa me soava estranha. Parece que os torcedores do Real Madrid andavam furiosos com nosso Neymar. Aparentemente não conseguiram engolir certas declarações do santista louvando o Barcelona e isso se transformou num caso muito sério. Se o presidente e diretores do clube espanhol se deram ao trabalho de armar uma verdadeira operação de guerra para evitar novas declarações de Neymar é porque os protestos dos torcedores quase fazem lembrar Londres de alguns dias atrás.

Uma comitiva de paz está reunida em Madri para ajudar. Todos entendem o grave momento e cerram fileiras. O Real Madrid oferece R$ 100 milhões pelo goleador santista, mas ainda não se sente seguro. Teme talvez que o Barça cubra a oferta, animado pela suposta simpatia de Neymar. É possível que até aumente a oferta.

Sempre achei que o futebol tinha total vinculação com a realidade e que ele espelha sempre a sociedade da qual é parte. Mas às vezes duvido disso. De vez em quando o futebol parece deliberadamente desligado do que acontece no mundo e vive numa irrealidade só dele, numa espécie de bolha afetada por nada. Porque essas cifras e esses protestos de torcedores vêm do mesmo país em que as viúvas viram cortados parte dos benefícios sociais a que tinham direito, que reduziu a compra de remédios distribuídos pelo Estado em 2,5 bilhões, que aterrorizado pelo índice de desemprego que chegou a 21% foi autorizado pela União Europeia a fechar suas fronteiras a imigrantes romenos.

Aqueles torcedores que indignados protestavam pelas declarações de Neymar talvez devessem reservar um pouco de suas energias para protestar por outras coisas. Por exemplo, o aumento de 50% nas tarifas do metrô. Eis que, quando pensava nessa esquizofrênica divisão entre futebol e realidade, aparece uma outra notícia que coloca as coisas no seu devido lugar. Como eu sempre acreditei, o futebol é parte da sociedade e reflete os momentos que ela atravessa: os jogadores espanhóis entraram em greve e o Campeonato Espanhol começa sem jogos. Agora sim o futebol se ajusta ao país e sua crise é uma só.

E leio que a greve é por falta de recebimento de salários. Inúmeros clubes que formam a liga espanhola estão falidos e há jogadores que não recebem desde maio. Vi pela televisão a reunião em que os jogadores decidiram pela greve. Para minha surpresa na sala, por sinal lotada, havia vários campeões do mundo que jogam no Real e no Barça, clubes que mantêm os salários em dia. Casillas, Puyol, etc, estavam lá em solidariedade aos companheiros e como membros do sindicato dos jogadores profissionais. Emprestavam seu prestígio e sua força aos outros.

A cena me causou impressão porque reuniões sindicais no universo futebolístico brasileiro são raras. Nem sei se ainda existe algum sindicato de atletas profissionais. O que tenho certeza é que a maioria dos profissionais de futebol no Brasil vive muito mal, muitas vezes não são pagos, e nem assim fazem parte de sindicatos. Isso para não falar em jogadores famosos. O único jogador realmente famoso ligado ao sindicato, que eu me lembre, foi o Leão que cansou de pedir a companheiros igualmente renomados que se juntassem ao sindicato. Inutilmente. Nunca conseguiu a adesão que precisava.

Acho que esse é um ponto em que a vida na Espanha pode ser enriquecedora para Neymar. Não creio que seu futebol melhore ainda mais na Europa, mas seu senso de cidadania talvez. Uma experiência na Europa pode ser muito útil a um jogador atento à vida que se passa ao seu redor. Sei que é raro, sei que é difícil. Ainda não vi ninguém voltar de lá modificado, tendo outras preocupações que não seu bem imediato. Já ouvi, no entanto, algumas declarações que mostram como a Europa marcou certos jogadores, como se sentiram finalmente fazendo parte de uma coletividade de jogadores.

Está tudo à disposição de quem quer ver. Se Neymar for mesmo para a Espanha vai ter oportunidade de acompanhar as ações de jogadores como Casillas, Pujol e Xabi Alonso, quando se trata de enfrentar uma crise. Tomara que alguma coisa fique.

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