domingo, agosto 28, 2011

LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - A primeira rede social

A primeira rede social
 LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO
O ESTADÃO - 28/08/11

Os seguidores de Vênus estavam acima da estupidez humana


Em 1761, mais de 500 pessoas participaram de um projeto científico traçando o curso de Vênus pelo céu da Europa. Ardia a feroz Guerra dos Sete Anos entre as grandes potências europeias, mas os seguidores de Vênus pertenciam a uma comunidade apátrida, cujos interesses estavam acima, no caso literalmente, de questões geopolíticas e da estupidez humana.

Eram pessoas que se correspondiam e pertenciam ao que depois seria chamado de República das Letras, uma nação epistolar sem sede ou fronteiras, unida apenas pela curiosidade intelectual. O projeto Vênus foi um dos primeiros exemplos de ação conjunta desta precursora de rede social, arregimentada pelos e-mails da época.

A origem do movimento está na “república literária” de Cícero, um ideal romano de preservar o conhecimento e o pensamento livre de qualquer limite que ressurgiu na Renascença, produziu ou inspirou gente como Copérnico, Galileu e Descartes e o Iluminismo e definiu, às vezes hereticamente, uma identidade própria para o “Ocidente”, já que depois da ruptura de Lutero e das descobertas no novo mundo nem a religião nem o isolamento geográfico asseguravam isto. Para chegar a ser um paradigma, o ideal ciceroniano teve que sobreviver ao obscurantismo e aos estragos da história.

A única cópia conhecida do seu manuscrito “República” foi descoberta no século 19 embaixo de uma transcrição de comentários de Santo Agostinho sobre os salmos. Não deixa de ser uma metáfora perfeita para a tirania cultural da Igreja durante séculos devermos nosso conhecimento deste texto de Cícero ao fato de monges relapsos não terem raspado o pergaminho adequadamente antes de reusá-lo.

Como as redes sociais atuais, a primeira rede social também tinha sua língua própria, o Latim clássico, depurado do Latim escolástico e oficial, e desenvolveu práticas peculiares de comunicação e disseminação – todas relacionadas com a dificuldade, na época, de simplesmente fazer uma carta chegar ao seu destino em pouco tempo – equivalentes aos sinais, às abreviaturas e aos atalhos usados nos tuiters e facebooks de agora.

A diferença entre a República das Letras e a Internet é que uma manteve viva uma tradição de humanismo e curiosidade cientifica, às vezes em luta aberta com a ortodoxia prepotente das igrejas, enquanto a outra, sem nenhum inimigo que a contenha ou religião que a esconjure, parece servir a uma republica transnacional da banalidade.

Fumar em lugar fechado está sendo proibido em todo o mundo para evitar a contaminação do vizinho, que pega fumaça e seus males de segunda mão. Acho que deve-se pensar em obrigar quem tem telefone celular a também ir usá-lo na rua. O objetivo seria nos proteger da contaminação pela vida alheia. Não precisamos saber do furúnculo da tia Elvira. E agora, com os pods e pads que fazem de tudo e informam tudo, há uma nova praga. Gente que no cinema, no meio do filme, liga o troço.

Se ainda fosse para saber como está o índice Bovespa. Mas não, geralmente é para saber da tia Elvira.

Um comentário:

  1. Luís Fernando Veríssimo, desumano, não quer saber do furúnculo da tia Elvira. O humorista Luís Fernando Veríssimo é famoso por sua timidez e discrição; talvez por isso se irrite com a moderna contaminação dos vícios sociais.
    Pela sua coluna dominical d’O Estado de São Paulo se queixou do cigarro do vizinho e das conversas pelo celular, em público e voz alta.
    Tão revoltado que não quer saber nada sobre o furúnculo da tia Elvira: se dói, se solta pus, nem onde está localizado (será que é ali?).
    Tia Elvira que se dane...
    E assim ele fechou a crônica de 28/08/2011:
    “Fumar em lugar fechado está sendo proibido em todo o mundo para evitar a contaminação do vizinho, que pega fumaça e seus males de segunda mão. Acho que deve-se pensar em obrigar quem tem telefone celular a também ir usá-lo na rua. O objetivo seria nos proteger da contaminação pela vida alheia. Não precisamos saber do furúnculo da tia Elvira. E agora, com os pods e pads que fazem de tudo e informam tudo, há uma nova praga. Gente que no cinema, no meio do filme, liga o troço.
    Se ainda fosse para saber como está o índice Bovespa. Mas não, geralmente é para saber da tia Elvira.”.
    Conforme saiu no blog do Márcio: http://marcio.avila.blog.uol.com.br

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