segunda-feira, agosto 29, 2011

JOSÉ ROBERTO R. AFONSO - Quem é o gringo?


Quem é o gringo?
JOSÉ ROBERTO R. AFONSO
O ESTADÃO - 29/08/11

"É para gringo ver? O Brasil quer inventar um novo modelo fiscal?", questionam especialistas em finanças públicas no exterior, a respeito da política e das práticas fiscais no Brasil depois da crise global de 2008.

Com a globalização das informações, a mídia local investigativa e a nossa excelência em transparência fiscal, os gringos perguntam até detalhes.

Não custaria muito caro e também não seria muito arriscado acumular tantas reservas e expandir o crédito tão rápido, para acelerar a economia, à custa de dívida pública? Como o governo continua a se endividar, diante do cenário de que uma nova crise viria da desconfiança justamente em torno da dívida pública, ainda que dos países ricos? Como não reparar que o Tesouro emite títulos para emprestar coincidentemente aos mesmos credores que lhe recolhem cada vez mais receita primária, seja pela compra de ativos financeiros; seja pelo pagamento de tributos federais (às vezes antes de esgotados recursos judiciais ou do vencimento); seja pela transferência de dividendos delucrosadvindosdasaplicações nos mesmos títulos? Acreditamos mesmo nisso ou queremos enganar a quem?

Ao confrontar a experiência brasileira com a internacional, encontram-se aqui arranjos institucionais peculiares e que tornam as relações entre a política fiscal, a monetária, a cambial e, depois da crise, também a creditícia mais complexas e confusas do que na teoria e do que nos outros países. É possível apontar resumidamente para alguns aspectos peculiar e sem nossas instituições e práticas. (Se interessar, uma análise mais circunstanciada é apresentada no e-book Crise, Estado e Economia Brasileira, da Editora Agir, já disponível em livrarias digitais.)

A maior "jabuticaba" é incluir o Banco Central no setor público para calcular e avaliar indicadores fiscais. Ninguém faz isso no mundo (em raros casos, contam o resultado final ou contas quase fiscais). Aqui, volume e variação das reservas e de instrumentos monetários clássicos afetam o tamanho da dívida e mesmo o resultado nominal (que passa a ser descartado, sendo ele o mais importante, por princípio).

No caso particular das divisas, como não são trazidas pelos governos e não constituem uma forma de poupança fiscal externa (como em outros exportadores de commodities), o seu acúmulo exige um elevado endividamento (interno) e um pesado custo fiscal - 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB) de equalização cambial só no primeiro semestre. Se é bom ter um seguro nas contas externas, não deixa de ser péssimo que o preço do prêmio pago seja ignorado pela sociedade (até mesmo pelos economistas).

Erro também é monopolizar as atenções em torno da dívida líquida (setor), desprezando o conceito bruto (governos), apurado em duas versões - a tupiniquim e a semelhante à internacional. Em junho, o saldo das respectivas dívidas era de 39,7%, de 56% e de 65,3% do PIB. Pior do que a diferença de porte é que elas apresentaram evolução bem díspare no pós-crise: entre agosto de 2008 e junho de 2011, a dívida líquida diminuiu em 3,2 pontos do produto, enquanto a bruta (mundial) aumentou em 5,8 pontos.

Para impulsionar o crédito (variação de 6,5% do PIB no mesmo período) e para comprar reservas (de 1,8%), o governo se endividou - diretamente pelo Tesouro, no mercado (de 2,4%) e indiretamente, via Banco Central (de 4,6%), que usa sua carteira para enxugar o mercado de forma voluntária (compromissada) ou forçada (80% dos recolhimentos compulsórios são remunerados). Deveria saltar aos olhos que a atual carteira dos títulos do Banco Central brasileiro (18,3% do PIB em junho) supere os cerca de 11% detidos pelo Federal Reserve, o banco central dos EUA, e depois de toda reação que moveu contra a crise norteamericana. Porém, a opção nacional é ter olhos apenas para a dívida líquida.

Outros aspectos também tornam a fiscalidade tupiniquim singular. Desde uma lei de 1964, a despesa é medida pelo regime de competência e a contabilidade pública é bem organizada, reformas que economias avançadas só adotaram nas últimas décadas; além da adoção, em 2000, de uma Lei de Responsabilidade Fiscal tomada como paradigma mundial. Mas o País segue medindo sua dívida pela ótica de quem financia e deduz superávit/déficit pela variação daquele saldo - o certo seria chamar o indicador de "crédito líquido contra o setor público". Isso implica furos que não se têm na contabilidade - como restos a pagar com fornecedores (na casa de 3% do PIB, só no governofederal) ignoradosnamedida usual da dívida.

Assim, a dualidade tipicamente brasileira também se reproduz nas finanças públicas. Estas passaram por reformas profundas até o final do século passado e adotam padrõesmodernosnagestãoorçamentária, financeira e patrimonial. Porém, governo e mercado continuam seguindo como principal convenção os indicadores apurados por uma metodologia obsoleta - na essência, a mesma que o Fundo Monetário Internacional (FMI) impôs ao País no início dos anos 80. O mundo mudou, mas neste quesito o Brasil não mudou. Quer ser mais realista do que o rei - quando não, acha que engana até o rei.

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