domingo, agosto 28, 2011

GAUDÊNCIO TORQUATO - A sustentável leveza dos setentões

A sustentável leveza dos setentões
GAUDÊNCIO TORQUATO
O ESTADÃO - 28/08/11
A questão está na ordem do dia, sob tiroteio de combatentes e defensores dos dois lados: a aposentadoria compulsória do servidor público aos 70 anos deve ser mantida ou estendida para 75 anos? Os defensores da posição garantida pelo artigo 40 da Constituição federal amparam-se na tese da renovação de quadros e oxigenação das estruturas, reforçada pela crescente pressão dos grupamentos que o País incorpora a cada ano à massa de trabalho e que enxergam na administração pública larga via de acesso. Sob esse argumento, que deixa transparecer algum resíduo de civismo (é preciso acreditar nesse sentimento louvável), embutem-se traços do ethos nacional, particularmente os que explicam a acomodação e o gosto brasileiro de se amamentar nas tetas do Estado. Por isso a aposentadoria, quanto mais precoce, cai bem. Quando isso não ocorre, os exércitos setentões são barrados na vanguarda da administração pela espada compulsória. Cheios de vitalidade, dão meia volta e se integram rapidinho aos batalhões que lutam na arena do mercado. São poucos os que recolhem suas armas. Em alguns espaços - altas Cortes do Judiciário e universidade - a batalha pela aposentadoria mais retardada, aos 75 anos, ganha relevo por abrigar componentes conceituais e valorativos de monta. Merece maior atenção.

O arsenal argumentativo parte da leitura de que no auge do vigor intelectual, quando exibe densa bagagem jurídica, domínio pleno das técnicas processuais e vívida identificação com a alma social, o magistrado é retirado de sua "casa", abrindo um vácuo cujo preenchimento se dá apenas quando o substituto adquire a experiência do antecessor.

Depois de certo tempo, preenchido o vazio e reposto o acervo da Corte - pelo entendimento de que o exercício do debate e do convívio é fundamental para a elevação do discurso de seus componentes -, chega-se, novamente, ao ponto de quebra: outro setentão chega ao final da jornada. Final? Sim, por conta da determinação constitucional. Certas leis, porém, não respiram o cheiro do tempo, caindo na obsolescência. Ora, aos 70 anos os magistrados ascendem àquele patamar onde Bacon os homenageia com respeitosa expressão: "Instruídos, sábios, reverendos, circunspectos, íntegros, preparam o caminho para a justa sentença, como Deus costuma abrir o seu caminho elevando os vales e abaixando as montanhas".

Demonstração cabal da vitalidade de juízes que se aposentam no ápice da vida profissional é o reingresso no mercado do trabalho pela porta da advocacia, por onde muitos começaram a trajetória.

A troca da toga pela beca tem sido comum entre nós, a denotar que o percurso do magistrado poderia durar mais uns aninhos. Retirar de campo parcela da plêiade da Justiça quando esta brilha no ponto mais alto de sua carreira parece uma medida desprovida de bom senso. Um luxo desnecessário. Alguém poderá objetar: nada se perde porque os magistrados continuarão a prestar serviços ao País em outros campos. Em termos. As instâncias superiores do Poder Judiciário são, por excelência, as que mais carecem de quadros de invulgar cultura jurídica para fazer correta interpretação das leis e exercer, de maneira exemplar, a sagrada liturgia de aplicação da justiça. Portanto, estender a obrigatoriedade da aposentadoria ao limite de 75 anos seria decisão condizente com o figurino de um país que zela pelo patrimônio do saber acumulado.

Compreende-se a necessidade de dar oportunidade aos mais jovens e abrir os pulmões das instituições. Mas na esfera mais alta do Judiciário a balança pende para a carga da sapiência, que não pode ser deixada de lado.

A par dessa abordagem, há o fator científico, que põe em relevo a taxa crescente de expectativa de vida dos cidadãos - no caso brasileiro, estimada em 73 anos em 2008, e com possibilidade de atingir em 2015 quase 75 anos (em 2050 a projeção é de 81,2 anos de vida). Em dez anos, entre 1998 e 2008, esse indicador cresceu 3,3 anos, segundo o IBGE, a denotar que os avanços tecnológicos, ao esticarem a régua da vida, contribuem para alongar os ciclos profissionais. Assim, o tempo para um servidor público entrar na compulsória, sob as conquistas da ciência da longevidade, é diferente do espaço de duas décadas atrás, ou, para ser mais claro, da baliza gerada pela Carta de 88. Se considerarmos que a taxa de mortalidade infantil, no Brasil, declina há bom tempo - caiu quase 30% de 1998 para 2008 - e a população idosa continua a se expandir, poderemos prever o impacto da "bomba-relógio" que se arma nas imediações do sistema da Previdência.

Esse, porém, é um capítulo à parte nessa história.

Voltemos aos danos causados ao País pela aposentadoria compulsória de servidores com 70 anos. Estudo da Fiesp mostra que o Brasil economizaria R$ 1,4 milhão/ano por trabalhador se o período de trabalho fosse estendido para 75 anos.

Em cinco anos, a economia na esfera federal seria de R$ 2,4 bilhões. Jogando a planilha nos Estados e municípios, a conta chegaria aos R$ 5,6 bilhões em cinco anos. Sob esse dado, ganha força a PEC 457/05, aprovada no Senado e tramitando na Câmara, que propõe alterar a idade para a aposentadoria compulsória do servidor. A trombeta corporativa de grupos que lutam para galgar a escada do poder fará muito barulho. Espera-se, contudo, que o argumento racional não seja engolfado pelo adjetivo emocional.

Vale, por último, um rápido olhar na nação que se esforça em proclamar a força de suas instituições democráticas: os Estados Unidos da América. Ali os juízes da Suprema Corte podem permanecer no cargo até a morte. São inamovíveis. Enquanto tiverem boa saúde, física e mental, permanecem na ativa. Contam-se na mais alta Corte americana juízes com quase 80 anos.

A conclusão é irretorquível: os setentões daqui e de lá, do alto de seu vigor, escrevem as páginas mais memoráveis dos livros de sua vida. Não são dispensáveis. Ao contrário, são plenamente sustentáveis em seus postos.

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