sábado, agosto 13, 2011

DRAUZIO VARELLA - Luiz Nasr

Luiz Nasr
DRAUZIO VARELLA
FOLHA DE SP - 13/08/11 

Uma das faces mais duras de envelhecer é conviver com a perda de quem construiu nossa história


Semana passada, perdi um amigo querido. Luiz Nasr era um daqueles companheiros de adolescência que ao encontrarmos depois de meses ou anos de separação involuntária, a intimidade se restabelece instantaneamente sem solução de continuidade, como se tivéssemos nos visto na véspera.
Desde que recebi a notícia de seu desaparecimento súbito, tenho estado mais introspectivo, suscetível a surtos recorrentes de tristeza que trazem lembranças da imagem dele e das situações que vivemos juntos.
Era uma figura singular. Você dirá: "todos somos". Mas se o tivesse conhecido entenderia o que quero dizer. Havia jogado basquete, media quase dois metros e por onde andava criava um movimento proporcional à estatura; impossível passar despercebido.
Jamais vi alguém com tanta facilidade de relacionamento. A timidez natural que aflige os mortais ao entrar em contato com estranhos lhe era desconhecida. Puxava conversa com passageiro de metrô, motorista de táxi, vizinho de apartamento, mendigo de rua, pessoas influentes ou simples, extrovertidas ou retraídas; ficava e deixava à vontade todos em sua volta.
Dava a impressão de que carregava com ele um ambiente portátil, pronto para ser instalado assim que lhe desse na teia: numa festa, num bar, na fila do banco, no caixa do supermercado.
Uma vez, numa padaria em Nova York, atrás de nós parou uma senhora com uma cesta de pães. Ele perguntou se ela tinha netos, liberdade inaceitável para os padrões americanos. A senhora olhou arredia. Ele explicou que uma mulher magra e elegante como ela certamente ingeria pouco carboidrato; aqueles pães só poderiam ser para o lanche da família. Em menos de cinco minutos a senhora mostrou as fotos e contou histórias dos três netos que acabavam de chegar da Califórnia. Despediram-se como velhos amigos.
Personalidade inquieta, lia tudo que lhe caía nas mãos. Aprendi muito com ele, conhecia cinema, literatura, artes plásticas e pintava muito bem. Ganhei dele um quadro que não canso de olhar, é uma pintura abstrata em que o Rio Negro aparece no meio da floresta colorida, luxuriante, representada com pinceladas longas e gotas de tinta escorridas na vertical.
Luiz morou em Nova York durante muitos anos, onde dirigiu uma agência de publicidade, e ganhou o prêmio Clio. Nesse período, aproveitei para frequentar um dos hospitais da cidade. A cada viagem tomava o cuidado de perguntar se dormir na sala de seu apartamento não o incomodava. Ele respondia que não, considerava aquela uma contribuição para combater o analfabetismo dos médicos brasileiros.
Numa época sem internet, era leitor assíduo do caderno de ciência do "New York Times" e de livros de medicina escritos para leigos, desconfio que não apenas por hipocondria, mas para me humilhar com sua cultura em minha área de atuação. Muitas vezes conseguia: foi por um telefonema dele que eu soube dos planos para o lançamento do projeto Genoma, que sequenciou os genes humanos.
Depois de dirigir uma empresa no Panamá, mudou-se para Guaiaquil com a esposa. Minha mulher e eu fomos ao casamento e não os visitamos mais. Ele nos acusava de ingratos: "Em Nova York viviam na minha casa; no Equador, nunca". Eu insistia que se ele voltasse para Nova York seria diferente.
Finalmente, neste ano foi possível fazer a tal viagem. Passamos uma semana juntos com nossas mulheres pelo interior do Equador e atravessamos a Cordilheira dos Andes. Conversamos horas consecutivas, bebemos, comemos e demos risada como adolescentes, lembranças que agora me ajudam a lidar com a perspectiva de sua ausência definitiva.
Depois da perda da saúde, a face mais dura do envelhecimento é conviver com o desaparecimento dos personagens que construíram nossa história. Não importa quantos amigos íntimos tenhamos, cada um deles é insubstituível, os que ficam não preenchem o vazio deixado pelo que se ausentou.
Alguém já comparou essa situação à de uma floresta em que cada árvore que desaba abre uma clareira. Você poderá dizer que nela nascerão outras. É verdade, mas levarão tempo para crescer; até se tornarem frondosas e acolhedoras, talvez não estejamos mais aqui.

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