segunda-feira, julho 25, 2011

LIGIA BAHIA - Uma doença para cada remédio


Uma doença para cada remédio
LIGIA BAHIA
O Globo - 25/07/2011

Antes se dizia existir um remédio para tudo e não havia mal que sempre durasse. Agora há inúmeras razões para o predomínio da impaciência. Além de problemas de saúde, quem procura atendimento tem que ficar esperto. A saúde concentra cerca de um quarto do total de investimentos em pesquisa. As inovações trazem alternativas de tratamento e a multiplicação de patologias e intervenções para corrigir comportamentos e insatisfações estéticas. O mundo tem mais gente, mais doenças que duram a vida toda e desejos de resolução de variadas disfunções, via assistência médica. Técnicas mais modernas e precisas tornam os diagnósticos mais precoces e suscitam mudanças permanentes nos limiares de normalidade. Antigos traços de personalidade como desatenção e sentimentos de tristeza, angústia e amargura alçados ao status de condições mórbidas propulsionam a pesquisa e comercialização de medicamentos. Nesse renovável ambiente, andar a esmo em meio à abundante oferta de novidades diagnósticas e terapêuticas pode causar avarias emocionais, físicas ou financeiras.

Do pouco que a medicina podia fazer em relação à doença e à morte prematura passou-se a dispor de medidas preventivas e remédios genuinamente efetivos, salvando vidas em uma escala significativa. Mas, com o passar do tempo, a dinâmica de inovação tecnológica foi acusada de provocar um aumento de gastos, nos sistemas de saúde dos países afluentes, superior aos ganhos de longevidade e qualidade de vida. Atualmente, o papel das novas tecnologias é controverso: há quem as considere como o problema da sustentabilidade dos sistemas de saúde, como solução ou as duas opções.

A polêmica sobre o bem ou mal-estar causado pelas inovações tecnológicas começa pela reconhecida, mas nem sempre explicitada, interação de médicos e hospitais com as indústrias de medicamentos e de equipamentos. Diversas práticas, como pagar "por fora" por materiais não reembolsáveis, prescrever medicamentos só comercializáveis em determinados locais, inquietam os pacientes e as entidades de classe. Mas a proximidade dos profissionais com produtores de materiais médico-cirúrgicos e insumos é bem mais extensa do que a vista da maioria dos leigos alcança. As pesquisas evidenciam a existência de fluxos contínuos que conectam ensino, pesquisa e exercício profissional com os processos de produção e difusão de tecnologia. Estima-se que as empresas farmacêuticas gastem US$20 bilhões por ano com publicidade direcionada para médicos.

Nos EUA, segundo trabalho divulgado em 2007 no "New England Journal of Medicine", 94% dos médicos relataram manter algum tipo de relação com a indústria farmacêutica. O recebimento de amostras de medicamentos e alimentos no local de trabalho foi declarado por 83% e 78%, e o pagamento de despesas para participação em eventos científicos ou consultoria, palestras e recrutamento de pacientes para ensaios clínicos, por 35% e 28%. Os médicos de São Paulo, entrevistados em 2010, não ficaram atrás dos colegas estadunidenses: 93% receberam brindes e benefícios das empresas farmacêuticas e de equipamentos, 77% disseram conhecer quem aceita produtos das indústrias com valor acima de R$500 e 22% sabiam quem indicou medicamentos, órteses/próteses desnecessários. A convergência das atitudes dos médicos do Sul e do Norte se estende para as opiniões favoráveis sobre a importância da indústria para a inovação tecnológica e a atualização científica.

Outra dimensão do debate sobre a inovação tecnológica remete à priorização de trajetórias de produção-consumo portadoras de elementos redutores de custos para permitir que continuidade e aceleração do progresso tecnológico no setor exerçam impactos positivos nos padrões de vida e saúde. Estimular a produção de medicamentos eficazes para os problemas mais frequentes, vacinas, equipamentos miniatuarizados e de menor preço, incentivar o uso de técnicas de tratamento e diagnóstico menos invasivas, reconhecer a importância das intervenções sobre as condições de vida e trabalho que afetam a saúde e gerar e difundir informações são estratégias que vinculam saúde com desenvolvimento econômico e social. Contudo, imprimir direcionalidade ao desenvolvimento científico requer a compreensão sobre sua lógica e relativa autonomia, bem como acerca das causas do atraso tecnológico.

O esforço próprio no investimento em ciência e tecnologia implica a adoção de uma política de Estado para a saúde. A fragmentação das ações governamentais, conjugada com o atendimento a interesses particulares lastreados em recursos públicos, reafirma o lugar do Brasil como consumidor de tecnologias importadas, selecionadas segundo critérios das taxas de retorno de eventuais investidores, e não pelas necessidades de saúde. A orientação "salve-se quem puder" deixa o Brasil ainda mais vulnerável ao consumo de tecnologias que não articulam gastos públicos com acesso universal. A ausência de balizamentos normativos confiáveis para reorientar as escolhas de médicos, pacientes e das indústrias abre espaço para a interferência de lobbies.

Se a inovação tecnológica habitar apenas as pastas dos representantes farmacêuticos e as estratégias e propagandas das empresas, a preferência pelas políticas de saúde privatizantes sustentadas com financiamento governamental parecerá, paradoxalmente, incontroversa. Iniciativas totalmente descoladas da legislação do sistema de saúde brasileiro, como a de um grupo de 50 empresários do Rio de Janeiro, certamente católicos, que pretendem estabelecer uma franquia de um hospital filantrópico, construído pela comunidade israelita paulista, granjeiam apoios políticos de todos os matizes partidários. Enquanto isso, na mesma cidade e semana, uma gestante em trabalho de parto não conseguiu acesso a uma simples ambulância, tecnologia prevista, contabilizada e alardeada nos programas dos governos federal, estadual e municipal.

LIGIA BAHIA é professsora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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