sexta-feira, julho 01, 2011

IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO - A minha Paris à meia-noite


A minha Paris à meia-noite  
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
O ESTADÃO - 01/07/11

Não sei qual é a cidade do sonho das novas gerações. Será uma ligada à tecnologia, aos iPds, iPods, iPhones, Kindler e outros? Minha filha diz que hoje são muitas as metrópoles, cada uma com seu fascínio. Mas, ponderou, talvez Tóquio? Bem, Sofia Coppola já esteve lá e fez um filme perfeito, Encontros e Desencontros. A cidade da minha geração foi Paris, que permaneceu invicta por décadas. Aos 15 anos eu queria ir para lá, aos 18 continuava, passei pelos 20, 25. Aos 27 consegui descer em Orly. O Charles De Gaulle não existia em 1963. Tudo me veio à cabeça quando assisti à Meia Noite em Paris, de Woody Allen, um filho da mãe. Sacana, fez o filme que eu queria fazer. Não é de hoje que o Woody Allen me copia. Eu tinha A Rosa Púrpura do Cairo na cabeça havia muito tempo, quando ele me apareceu com o filme. Essa história de personagem sair da tela e vir para o mundo real existia em minha vidinha.

Na infância, os personagens saltavam da tela e me acompanhavam. Voei no tapete com o ladrão de Bagdá e no foguete de Flash Gordon, Tarzan ficava furioso porque na minha mangueira só eu tinha cipó para voar de galho em galho, o Zorro me deu uma máscara igual à dele, Roy Rogers me emprestava o cavalo Trigger, cavalguei com Drago, estive ao lado do Capitão Blood, o corsário, navegando pelo Caribe. Adorava a palavra corsário.

Robin Hood deixou a floresta de Sherwood e se embrenhou comigo entre as mamoneiras dos terrenos baldios de Araraquara me ensinando a atirar com arco e flecha. Namorei Margaret O"Brien e Elizabeth Taylor, brinquei com Lassie, mesmo que ela estivesse encarnada num vira-lata paulistinha muito do vagabundo, porém fiel. Posso dizer que passei a infância e, não temo dizer, parte da adolescência convivendo com aquela gente que escapava da tela e ficava comigo pelas ruas da cidade, dormiam não sei onde, mas a cada manhã vinham me despertar. Cada dia era um, como sabiam que era a companhia deste ou daquele que eu preferia?

Não, Woody Allen! Depois você veio com Zelig. Ora, muito antes de você, fui capaz de me transformar, de encarnar todas as pessoas que eu admirava, do goleiro King, do São Paulo, ao Juscelino Kubitschek, de Gagarin ao Dr. Jivago, de Phillip Marlowe a Rick, o dono do café em Casablanca. Fui Julien Sorel e, acima de tudo, o Tom Ripley vivido por Alain Delon na versão de 1960 de O Sol por Testemunha. Perdoem-me, o mundo real sempre me chateou.

Quando entrei na sala para desfrutar Paris e aqueles anos 20 e 30 em que vivi lá, por meio dos livros, filmes, fotos, canções, fotografias e imaginação, senti-me ultrajado e pensei: como processar Woody Allen por levar minha vida ao cinema? Ele só errou, a meu ver, no solo inicial de Sidney Bechet. Eu teria usado Petite Fleur, tão francês e que Booker Pittman tocava na boate Cave, nos anos 60, aqui em São Paulo. Muito antes do personagem Gil Pender ir a Paris para tentar viver seu sonho, que sua mulher americana burra e bitolada não entendia, secundada pelos pais tapados, eu tinha convivido com Hemingway, Gertrude Stein, Djuna Barnes, Gerald Murphy (é dele a frase: "Viver bem é a melhor vingança"), Anaïs Nin, Henry Miller e suas cabotinices (palavra antigona, hein?) sexuais e com Scott Fitzgerald - quantas vezes andei sozinho pelas ruas, aguentando as lamúrias de Zelda, inconformada com o sucesso do marido?

Verdade que, mais tarde, deixei os anos 20 e pulei para os 50/60, era outra Paris igualmente excitante e mais próxima, uma vez que convivi com Brigitte Bardot e Roger Vadim, com Christian Marquand, Jean-Louis Trintignant, e aquela turma louca que fez de Saint-Tropez um point descolado. Circulava com Marie Laforêt, Truffaut, Godard e Belmondo, todos nos sentíamos acossados. Vivia pelo Champs-Elysées com Jean Seberg (por que foi se matar?) vendendo o The New Herald Tribune. Todos sabíamos do affaire Marquand e Marlon Brando, mas éramos modernos, avançados, o mundo estava aí para ser vivido e degustado até a última gota. Françoise Sagan e eu, sentados no café Dôme, revisamos um romancezinho ousado para a época, que ela acabara de escrever e estava sem título. Naquele momento, dei com a melancolia nos olhos dela e disse: Bom Dia, Tristeza. Nasceu o título que avassalou o mundo. Myléne Demongeot, gostosinha, rival de Brigitte, me provocava muito, mas eu estava caidinho por Pascale Petit. Minha chateação é que por não ser existencialista, e sim católico apostólico romano, nem Sartre nem Simone me aceitavam no grupo do La Coupole. Quanto a Albert Camus, compartilhávamos o absurdo da vida. Ele me apelidou de "o estrangeiro".

Este filme Meia Noite em Paris era para ter sido escrito por mim, que cultuei e me apaixonei por Paris desde as primeiras aulas de francês de mademoiselle Fanny, que nos obrigava a decorar Chateaubriand e Prévert, a ler Lamartine e Paul Valéry. Paris de René Clair e de Françoise Arnoul e Martine Carol, que mostravam os seios despudoradamente. Benfeito, não fiz o filme, fiquei bobeando, veio um nova-iorquino e colocou na tela tudo que a minha geração quis. Não fizemos, azar, outro fez. Ainda bem que fez direito e colocou nele Marion Cotillard, um êxtase. Falando nisso, o presidente francês está bem servido, a Carla Bruni é uma gracinha.

Um comentário: