domingo, junho 26, 2011

LUIZ SÉRGIO HENRIQUES - Itália e Brasil, aproximações


Itália e Brasil, aproximações
LUIZ SÉRGIO HENRIQUES
O Estado de S.Paulo - 26/06/11


Trocas, aproximações e empréstimos entre Brasil e Itália são mais do que naturais, à direita e à esquerda. Para não ir muito longe, e apontando só um fato decisivo na construção do Brasil moderno, foi no fascismo e na Carta del Lavoro que o Estado Novo se inspirou para regular corporativamente a economia e a vida associativa, disciplinando o mercado de trabalho e organizando, "pelo alto", a passagem para uma sociedade urbano-industrial de massas.

O fascismo, com sua retórica nacionalista, tinha óbvias pretensões imperiais e expansionistas. Encontrou tempestivamente antagonistas à altura. Limitando-me ao universo comunista - pois o antifascismo teve também vibrantes colorações liberal-socialistas e católicas -, Antonio Gramsci e Palmiro Togliatti souberam ir além da superfície de fatos e figuras. Mussolini, para eles, não era só um ditador caricato, "carismático", nem o fascismo um conjunto um tanto cômico de ritos e manipulações de massa. Eram, ditador e regime, a forma possível de modernização de um país da periferia, um país, além do mais, de constituição tardia, em que os "subalternos" haviam tido historicamente imensas dificuldades de se incorporar ao Estado, democratizando-o num sentido verdadeiramente moderno.

Com Gramsci e, especialmente, Togliatti, que a ele sobreviveria até 1964, imaginaram-se políticas de frente ampla contra o fascismo, regime que afinal levaria o país à catástrofe da guerra. E, tal como o nosso Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Comunista Italiano (PCI) participaria da feitura da Constituição que marca o "renascimento": uma Constituição que a partir de então afirma a República Italiana como "fundada no trabalho", um sinal distintivo da força dos comunistas na resistência e na reconstrução, ao lado das demais forças democráticas, inclusive moderadas.

Interrompe-se aqui o paralelo. As vicissitudes da guerra fria levariam o PCB à clandestinidade, limitando - mais do que a existência de um partido específico e suas possibilidades de amadurecimento - a própria trajetória constitucional brasileira do pós-guerra. Do outro lado do Atlântico, no entanto, crescia e se firmava uma singular experiência do comunismo fora do poder, mas com imensa capacidade de representar e dar dignidade ao mundo do trabalho num país que era uma das fronteiras sensíveis entre os blocos hostis da guerra fria.

Indispensável lembrar que, nos anos 1970, do velho PCI e das suas lutas nasceria uma expressão muito difundida e que, a meu ver, permanece como um dos emblemas deste início de século. De fato, um grande dirigente, como Enrico Berlinguer, abalava desde os seus fundamentos a matriz bolchevique, ao apontar a "democracia (política) como valor universal". Eram os tempos do "eurocomunismo", cuja força expansiva, num determinado momento, chegaria a influenciar fortemente uma corrente do velho PCB, auxiliando na compreensão da complexidade das coisas brasileiras e na afirmação da política - e não da aventura militar - como a via real para a superação do segundo surto ditatorial da nossa modernização.

Nem o PCI nem esse PCB existem mais. Neste tempo vertiginoso em que nos toca viver, identidades políticas e ideológicas caducaram, e caducam, irreversivelmente. A revolução neoliberal e o colapso do comunismo histórico moldaram estes últimos 30 anos, para o bem e para o mal. A vida social fragmentou-se, o mundo do trabalho foi desarticulado e se viu na defensiva, com o esvaziamento das suas formas associativas tradicionais. Simultaneamente, uma nova humanidade parece nascer: a vida em rede, a comunicação instantânea e horizontal põem em contato realidades distantes, mostrando o que têm em comum e tornando-as, precisamente, momentos distintos desta nova humanidade em construção.

Basta um clique e nos vemos, por exemplo, diante de um dos mais célebres jornais da esquerda, o L"Unità, "fundado por Antonio Gramsci". Tomamos conhecimento das desventuras recentes de um político extremamente perigoso, como Silvio Berlusconi, derrotado em eleições locais até mesmo na sua "capital", Milão. O berlusconismo, versão de um populismo autoritário que prometia uma espécie de "revolução liberal", parece estar em declínio e, como consequência, abrem-se novos horizontes para a Itália progressista de Gramsci e Norberto Bobbio, de Togliatti e Pietro Nenni, de Aldo Moro e do catolicismo do "diálogo".

À frente das oposições, um partido que é, rigorosamente, uma obra em construção: o Partido Democrático (PD), cujo eixo é a alma reformista do PCI. Com ele, estamos muito distantes - felizmente! - do marxismo-leninismo e suas florações tardias. De fato, o PD aparece como tentativa de construir síntese nova entre diferentes reformismos, abrangendo ainda o socialismo liberal e o catolicismo democrático. Assim, não é a expressão de uma ideologia total, mas antes demonstra aguda percepção dos limites da política, que não pode pretender ordenar autoritariamente a vida social, arregimentando-a à moda do fascismo ou - o que é particularmente doloroso - do stalinismo.

A derrota de Berlusconi e o caminho afirmativo do PD são razões para acreditar que pode haver uma inflexão positiva nestas duas grandes crises sobrepostas, a italiana e a europeia, cheias de risco para um modo de vida que costumamos condensar nas ideias de liberdade e bem-estar social.

Em tempo: neste artigo, feito de paralelos esparsos, cabe lembrar que a Itália democrática, a partir do presidente Giorgio Napolitano, deplorou a não extradição de um personagem do assalto às instituições promovido pelo extremismo dos anos de chumbo. Sinal, talvez, de que a corrente principal da esquerda brasileira ainda se mostra simbolicamente suscetível à tentação daquilo que, em paráfrase, poderíamos chamar de doença senil do comunismo.

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