sábado, maio 14, 2011

MANOEL CARLOS - Primavera de maio


Primavera de maio
MANOEL CARLOS
REVISTA VEJA - RIO


—Em poucos dias fomos testemunhas de três acontecimentos históricos, desde logo inseridos entre os mais importantes do século XXI: o casamento do príncipe inglês que um dia há de ser coroado rei, a beatificação de João Paulo II e a morte de Osama bin Laden, o homem mais procurado do planeta, grande vilão do mundo moderno.


Dessa maneira enfática — seu tom habitual —, o Raul deu a partida no assunto que ocuparia o tempo do nosso encontro, na tarde do dia 5.
— É muita emoção num espaço de três dias — ponderou o Gustavo, recém-chegado de uma viagem a Berlim, realização de um sonho que o acompanhou desde criança, por influência de um tio alemão.
— Há muito tempo não se via o mundo tão festivo — comentou a Arlete, única mulher presente.
— Não vejo razão para tantas comemorações — palpitou Evandro, o cético do nosso grupo de amigos.
Todos nós olhamos para ele, interrogativamente. E Evandro não se fez esperar. Deu suas razões:
— Vamos examinar caso a caso. O casamento do príncipe foi o tempo todo comparado ao casamento do Charles com a Lady Di. E na comparação perdeu sempre. E, por mais bonita e pomposa que tenha sido a cerimônia, ficou aquela sensação de desgosto por lembrarmos da mãe do rapaz, que morreu da maneira que todos nós sabemos.
— Ah, nisso você tem razão. Senti ódio quando vi aquela bruxa da Camilla, madrasta do príncipe William, entrando na igreja como se fosse a mãe! Isso sem falar nos chapéus ridículos que as filhas usavam!
— Reação típica de mulher — ironizou o Gustavo.
— E você queria o quê? Que eu reagisse como homem? — devolveu Arlete.
Contemporizei:
— Tudo bem, não vamos brigar por causa disso. Continuando: o que é que você tem contra João Paulo II?
— Nada, mas ninguém pode ignorar que a beatificação dele, num tempo recorde, foi jogada de marketing da Igreja, tentando, com isso, recuperar, um pouco que seja, o prestígio perdido. E, com essa recuperação, ter de volta alguns fiéis que debandaram.
— Calma lá — saltou novamente Arlete, católica não praticante, mas fervorosa devota de Santa Rita de Cássia. — Você não lembra, não, quando ele morreu? O povo gritava nas ruas de Roma: “Santo subito! Santo subito!”, pedindo que João de Deus fosse beatificado no mesmo momento em que deu o último suspiro! Acho até que demorou demais! Seis anos!
— Vai me deixar continuar, Arlete? É por isso que não gosto de mulher nas nossas reuniões. Não param de falar.
— Você não gosta é do bom-senso das mulheres, isso sim!
Todos rimos da pretensão descarada. Arlete bufou e voltou a investir:
— E a morte do Bin Laden? Também não merecia uma comemoração?
— Não! Porque foi um assassinato! E assassinato não se comemora!
E foi a vez do Leandro de bufar, irritado com as intervenções.
Estávamos, como sempre, no Café Severino, cenário preferido dos nossos encontros de fim de tarde, essas tardes atuais, o sol tímido, revezando com a garoa, mais paulistana que carioca. Tempo assim, nem muito quente, nem muito frio, já dando para abandonar o vinho branco e voltar ao tinto.
Num ano em que perdemos alguns companheiros, esses encontros revestem-se de um significado ainda maior, em que nos olhamos e nos tocamos com carinho, numa demonstração de amizade que tem sempre um pouco de adeus.
Fazia eu essas reflexões um tanto melancólicas, os amigos ainda discutindo sobre as comemorações que marcavam aqueles dias e colocavam na primeira página dos jornais e na capa de todas as revistas as mesmas notícias e as mesmas fotos, quando o Zé Antonio — 40 anos, caçula do grupo — entrou no Café, um sorriso largo varando o rosto de orelha a orelha.
— Que felicidade é essa, rapaz? — perguntei eu.
— Não estão sabendo não? O Supremo Tribunal Federal reconheceu a união de casais do mesmo sexo! Temos agora os mesmos direitos que vocês, que se casaram com mulheres!
Nós todos nos levantamos e abraçamos nosso amigo muito querido. Erguemos as taças, brindamos, enfrentamos uma segunda garrafa, uma terceira... e saímos para a rua. A garoa desaparecera e o céu estava azul, azul clarinho, e um canteiro na calçada exibia algumas margaridas. E aí, então, lembrando das notícias discutidas naquela tarde, e vendo, principalmente, a felicidade que continuava dançando no rosto do Zé Antonio, ataquei de poeta:
— Já perceberam como este outono está com um jeitão de primavera?!

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