sábado, abril 16, 2011

RUTH DE AQUINO - Por que condeno a lei contra a burca


Por que condeno a lei contra a burca
RUTH DE AQUINO

REVISTA ÉPOCA



Época
RUTH DE AQUINO é colunista de ÉPOCA
raquino@edglobo.com.br
Vi uma mulher de burca pela primeira vez no metrô de Londres, no verão de 1977. Eu tinha 22 anos, e senti pena, repulsa e impotência. Fazia calor nos vagões. Os homens que a acompanhavam falavam alto, ignorando-a. Eu tentava ver os olhos da mulher por trás da tela negra. Seria jovem, idosa? Seu olhar seria resignado ou um pedido mudo de socorro? Conseguiria respirar? Culpei os homens e o fanatismo islâmico. Ali estava uma mulher condenada à ausência de desejos.
Hoje, eu me vejo condenando a nova lei na França. O governo de Nicolas Sarkozy decidiu multar em € 150 toda mulher que, num espaço público, se cobrir com dois tipos de véus muçulmanos: a burca e o niqab, que só insinuam ou mostram os olhos. Dirigir, ir a locais de culto e trabalhar com esses véus pode. Mas caminhar, ir a parques, museus, hospitais etc., não. A lei permite o xador e o hijab, que deixam a face exposta, e não cita o islamismo ou credos religiosos. Proíbe apenas “a dissimulação do rosto”. O slogan é: “A República se vive com o rosto descoberto”.
O que a França consegue com isso? Transformar um símbolo de opressão num símbolo de autodeterminação religiosa e até feminina. Muitos se rebelam contra a arrogância do Estado que decide determinar como a mulher deve se vestir. Chrystelle Khedouche, francesa de 36 anos que se converteu ao islã, disse: “Decidi não usar o véu islâmico... agora, me obrigar a não usar é suprimir minha liberdade”.
Antes que o fundamentalismo católico, ateu ou feminista desabe sobre mim, vamos aos fatos, despidos de preconceitos. Há 5 milhões de muçulmanos na França. Menos de 2 mil mulheres usam burca ou niqab. Em Paris, não passam de 800. Elas se concentram em bairros de imigração árabe. Pela lei, policiais podem pedir que a mulher retire o véu para se identificar, mas não podem forçá-la a nada. Caso ela se recuse, eles a levarão à delegacia, e ela será multada. Essa minoria de muçulmanas já disse não se opor a mostrar o rosto ao pegar filhos na escola, ou à entrada de um banco ou museu. Mas se nega a abrir mão do véu.
Por trás da letra da lei, existe hipocrisia. Sarkozy precisa de medidas populares para melhorar suas chances de reeleição. A maioria dos franceses apoia o veto aos véus. Cita valores laicos e de liberdade da República francesa. São argumentos que soam legítimos. O véu integral, que não é pré-requisito no Alcorão, fere a dignidade da mulher por subtraí-la da sociedade. Muçulmanas obrigadas pelo marido a se cobrir estariam, enfim, livres para mostrar o rosto. É verdade. Mas e as que não abrem mão de se vestir assim? A França estaria violando seus direitos humanos.
Detesto a burca, mas a nova lei francesa – que multa e prende quem usar o traje – só acirra a intolerância
Há quem fique chocado com as mulheres nuas de pernas abertas, deitadas ou de quatro, nas bancas de revistas. Ou com as prostitutas semidespidas que se oferecem a clientes nas ruas. Serão todos multados e detidos em nome da República? O que determina a dignidade feminina se elas se despem ou se cobrem por vontade própria, por fé ou dinheiro, e não por submissão?
Um argumento hipócrita é o da segurança. Pessoas só com os olhos de fora podem ser terroristas disfarçados. Como se pessoas bombas, assassinos em série ou mártires fanáticos precisassem de burca para matar e morrer. Quando eu estava em Nova York em meio à nevasca, fui uma involuntária ameaça à segurança. Usava chapéu, sobretudo até os pés e echarpes em torno do pescoço e da face para evitar o vento cortante. Minha visão escapava ao agasalho, mas usei óculos de sol para não lacrimejar. O argumento da segurança não é racional. E os franceses se orgulham de ser racionais.
Motociclistas de capacete, cristãos carnavalescos ou mascarados em procissões religiosas, todos podem ocultar o rosto. Isso leva a nova lei a parecer xenófoba. Sarkozy talvez personifique o sentimento nacional de aversão à imigração e aos diferentes. Alguns franceses dizem: “Quer usar a burca? Então volte para seu país, volte ao lugar de onde veio”. Para muitas delas, esse lugar é a França.
Destesto a burca e o niqab. Mas uma lei que multa e prende só acirra a intolerância. Para usar uma palavra que os franceses adoram, é “ridicule”.

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