segunda-feira, março 28, 2011

FERNÃO LARA MESQUITA


Democracia é um subproduto da educação

FERNÃO LARA MESQUITA

O Estado de S.Paulo - 28/03/11

A presidente Dilma Rousseff disse ao Valor no dia 17 que acha fundamental o Brasil apostar na formação de profissionais fora do País, especialmente nas áreas das ciências exatas, e que vai procurar parcerias com os Estados Unidos para um amplo programa de bolsas de estudos.

Nada mau para uma ex-guerrilheira, presidente do governo de um partido que, até há pouco, abraçava a ignorância como um valor e, desde sempre, teve a xenofobia como uma de suas marcas registradas.

As revoluções políticas têm sido cultuadas por aquilo que, na verdade, nunca conseguiram entregar. Bem olhados os fatos, o que elas normalmente fazem é substituir um opressor por outro à custa de muito sangue e muito sofrimento.

Democracia mesmo - é o que a História confirma - é sempre um subproduto das revoluções educacionais.

A primeira grande revolução educacional da era moderna foi o Protestantismo.

Quando Gutemberg tornou a Bíblia acessível a todos e Lutero denunciou a falsidade das "verdades" com que a Igreja sustentava o sistema de opressão que compartilhava com as monarquias absolutistas, o mundo se iluminou.

Na Inglaterra, os primeiros "protestantes" da mentira que prevalecera até então andavam pelo país, batendo de porta em porta, para ler a Bíblia para a multidão analfabeta e deixar-lhe a mensagem subversiva: "Não aceitem as verdades que vos chegam prontas! Aprendam a ler para poderem buscá-la por si mesmos. Só a educação liberta!".

Era essa a essência da revolução de Lutero, que fez uma única exigência aos príncipes alemães interessados em se livrar do papa insuflando o Protestantismo: educação obrigatória e gratuita para todos, bancada pelo Estado.

Foi assim que nasceu o mundo moderno.

Livre para voar, a inteligência, fertilizada pela experimentação, fez o mundo "renascer". E o pensamento científico, desafiando a religião, redesenhou toda a realidade à nossa volta.

Depois disso nada mais foi como era antes.

A Inglaterra plantou o marco inicial submetendo o rei ao Parlamento e o Parlamento ao povo. E a sua extensão americana, tomando por base o novo Universo newtoniano de corpos celestes em permanente movimento mantidos em suas órbitas pela ação das forças e contraforças da gravidade, desenhou a democracia de poderes independentes funcionando dentro de um regime de checks and balances e instituiu o esforço e o mérito individuais como únicos critérios de legitimação da riqueza e do poder que vem com ela.

A democracia moderna nasce da primeira grande vitória do pensamento científico sobre a ideologia (religião). E, daí por diante, seus progressos e retrocessos estarão sempre ligados a esse embate.

Um século mais tarde, o desmoronamento da economia e da sociedade rurais a mergulharia na sua primeira grande crise. Enfiando-se caoticamente por um território institucional virgem de instrumentos capazes de ordená-la, a economia industrial aprofundou a concentração da renda e a miséria e levou a corrupção a patamares inéditos. E a consequente desmoralização da democracia criou o caldo de cultura propício ao desenvolvimento de novos regimes de força.

A democracia resistiu e, eventualmente, reformulou-se, onde tinha fundamentos na educação. E caiu aos pedaços onde - como em Portugal, por excelência - tinha sido fruto de transplantes tão artificiais quanto superficiais, feitos apenas para dar sobrevida às velhas oligarquias de sempre.

Nos Estados Unidos a lei antitruste e as ferramentas de democracia direta inspiradas no modelo suíço - leis de iniciativa popular, referendo e recall (direito de impeachment a qualquer momento de qualquer funcionário eleito por iniciativa popular) -, conquistadas ao longo de uma luta de quase 40 anos, armaram a cidadania para retomar o controle do processo político e restabeleceram a legitimidade do sistema representativo.

Mas o que relançou a democracia americana para o seu período de apogeu, no século 20, foi mais uma profunda reforma educacional inspirada no chamado "movimento anti-intelectualista americano", que concentrou fortemente o ensino público nas ciências exatas, plantou as bases da revolução tecnológica e projetou a economia daquele país para os patamares de hoje.

O Japão, destruído moral e materialmente ao fim da 2.ª Guerra, foi o próximo a embarcar nas asas da educação. Convencido de que tinha perdido a guerra para a ciência do inimigo, concentrou-se absolutamente na construção de um sistema de educação para a ciência, a tecnologia e a inovação que, em pouco mais de 40 anos, transformou aquela pequena ilha desprovida de tudo, menos de gente com vontade e conhecimento, na segunda maior economia do mundo.

Coreia do Sul e Taiwan, igualmente sem recursos naturais e ameaçadas pelas ditaduras de que se tinham desmembrado, seguiram-lhe os passos por caminhos semelhantes aos que Dilma prescreve para o Brasil. Importaram técnicos e cientistas japoneses para ensinar o que sabiam em seus territórios, ao mesmo tempo que mantinham programas maciços de bolsas de estudos no Ocidente para seus estudantes.

A história é exatamente semelhante em todas as democracias construídas no século 20.

Com a educação pública inteiramente aparelhada ideologicamente e o sistema voltado exclusivamente para os interesses corporativos que o parasitam, é sempre aí que despertam, com o ânimo aplastado, todos quantos sonham com um Brasil democrático e sem miséria.

Saber que a presidente da República é um destes e está disposta a derrubar essa barreira, ainda que seja começando por formar uma nova geração de futuros professores onde quer que eles possam de fato aprender, é altamente animador.

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