terça-feira, fevereiro 22, 2011

MÍRIAM LEITÃO

Crise da Líbia
MIRIAM LEITÃO
O GLOBO - 22/02/11
Estamos vivendo um momento da História em que a página está aberta. Tudo pode ser escrito. A Líbia rebelada contra o aparentemente eterno Muamar Kadafi seria considerada uma improbabilidade há poucas semanas. Ao mesmo tempo, o trágico banho de sangue das últimas horas era de se temer, sendo ele quem é. A Líbia tem a maior reserva de petróleo e gás da África e é grande fornecedor europeu.

Seus menos de dois milhões de barris de produção por dia não parecem muito, perto dos 10 milhões da Arábia Saudita, mas a Líbia tem reservas e clientes importante (vejam no gráfico): 79% do petróleo que produz são vendidos para a Europa. Depois de ser considerado terrorista por muito tempo, Kadafi foi aceito e elogiado nos últimos anos. O governo americano normalizou relações e trocou embaixadores em 2009; o então primeiro-ministro inglês Tony Blair tratou-o como estadista; o ex-presidente Lula foi lá e voltou convencido de que ele estava iniciando uma reforma democratizante; em 2008, a ONU aceitou que o país participasse do Conselho de Segurança como membro não permanente, e em 2010 a Líbia foi eleita para o conselho de Direitos Humanos da ONU.

Kadafi é um governante louco e tirânico que acredita ter criado um sistema único. Quando o ex-presidente Lula esteve em Trípoli, em 2003, escrevi neste espaço que a visita não tinha propósito, pé ou cabeça. E isso porque o Itamaraty aceitou imposições grotescas do cerimonial do ditador, entre elas uma esdrúxula visita ao túmulo do pai de Kadafi e aulas de geopolítica na sua tenda de propaganda, e Lula ainda o chamou de "velho amigo". Mas o governo brasileiro não foi o único a tratá-lo como estadista, quando ele é o que está mostrando ser nas últimas horas: um ditador sanguinário, que não tem dúvidas em mandar bombardear seu próprio povo.

A Líbia é de curta história como país independente. Primeiro, parte do Império Otomano; a partir de 1911, colônia da Itália; de 1943 em diante sob controle inglês e francês. Só em 1951 virou país independente, e há 42 anos é governado pelo mesmo ditador que sustenta ter criado um novo sistema misturando islamismo com socialismo, mas que na verdade é apenas mais uma ditadura. Durante muitos anos foi tratado como um governante pária, com seu regime colocado sob sanções. Mas depois as sanções foram suspensas e o governante aceito em nome dos negócios. O país tem 44 bilhões de barris de petróleo, o que é a maior reserva da África, e tem 54 trilhões de pés cúbicos de reservas de gás. Havia grande expectativa de a produção ser elevada, porque inúmeras empresas estavam se instalando no país para explorar petróleo e gás. Ontem, a ordem na maioria das companhias internacionais instaladas no país era retirar todo o seu pessoal e parar as atividades.

Em 1960, a produção chegou a três milhões de barris/dia, mas depois caiu. A intenção era voltar a esse nível, por isso ontem a cotação abriu em alta e assim ficou durante todo o dia. A economia da Líbia é totalmente dependente do petróleo: 25% do PIB, 80% das receitas tributárias e 95% das exportações.

Apesar de ter uma população pequena - ao contrário do Egito - tem alguns dos mesmos problemas presentes na crise egípcia: alto desemprego, alto preço de alimento, importação da maior parte dos alimentos necessários ao abastecimento, gastos exorbitantes com arsenal militar, uma grande pobreza e, principalmente, uma ditadura de décadas.

A atual onda de rebeliões não é apenas árabe, porque atinge países não árabes. É em grande parte na África, mas pode ir além do continente. Não há mais limite, apesar de cada país ter uma situação totalmente diferente do outro e cada governante ter tido reações também diversas: Tunísia, Egito, Iêmen, Bahrein, Argélia, Marrocos, Uganda, Irã e Líbia. Para onde mais pode se espalhar o movimento? Para qualquer lugar. O que era impensável poucas semanas atrás não é mais. Aumentou a incerteza, o risco, mas também a esperança.

O jornalista e escritor Robert Fisk, do jornal inglês "The Independent", escrevendo de Bahrain, sustenta que são revoltas seculares e não religiosas. Apesar disso, vários analistas falam muito dos riscos de extremismos religiosos. Fisk acha que esses analistas não estão entendendo as peculiaridades de cada país, e a natureza da revolta, mas alerta que todos esses governantes contra os quais a população se rebela foram apoiados, armados e sustentados por anos pelos governantes democráticos do Ocidente, principalmente os Estados Unidos. Há um preço a pagar por isso.

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