segunda-feira, fevereiro 28, 2011

HÉLIO ZYLBERSTAJ

  Dois mundos nas relações de trabalho
HÉLIO ZYLBERSTAJ

O Estado de S.Paulo 28/02/11
Dois fatos recentes, aparentemente desconectados, revelam a enorme distância que separa o Estado brasileiro da realidade concreta das relações de trabalho no País. Um deles é a Portaria 1.510/09 do Ministério do Trabalho e Emprego que pretende regulamentar o uso do ponto eletrônico. O outro é o recente acordo firmado entre os sindicatos dos bancários e a Febraban, que criou um procedimento interno de reclamação para os bancários. Os próximos parágrafos apresentam os detalhes dos dois fatos, para que o leitor avalie a distância entre os dois mundos.


O Ministério do Trabalho e Emprego justificou a Portaria 1.510/09 alegando que muitas empresas fraudariam os sistemas de ponto eletrônico, eliminando os registros das horas extras e prejudicando seus empregados. Para corrigir a situação, instituiu um modelo único de ponto eletrônico, supostamente imune a fraudes. Centenas de milhares de equipamentos teriam de ser substituídos por novas máquinas, gerando custos apreciáveis para as empresas. Todas terão de trocar, não importando se não são fraudadoras. A portaria cria exigências curiosas como, por exemplo, a obrigatoriedade de emissão de comprovantes. As novas máquinas teriam de emitir papeletas e cada trabalhador receberia pelo menos quatro delas por dia (na entrada, na saída para o almoço, na volta do almoço e na saída ao fim do dia). Os trabalhadores poderiam se defender das fraudes das empresas, mas teriam de guardar mais ou menos mil comprovantes por ano! Esse é um detalhe. Há muitos outros, que o reduzido espaço não permite abordar.

O mais importante é que a portaria demonstra mais uma vez a visão paternalista das nossas autoridades. No seu mundo, o trabalhador é um ser incapaz e indefeso, e só o Estado pode protegê-lo da sanha dos patrões. Essa visão, que prevalece desde os anos 30, produziu a CLT, a Justiça do Trabalho e muitas outras instituições que até hoje tutelam detalhadamente todos os aspectos da relação empresa/empregado - e a sufocam.

Agora, o outro mundo. A Febraban e os sindicatos de bancários de todo o País acabam de firmar um acordo histórico que cria um procedimento interno de reclamação. O acordo é uma inovação importante para a gestão do conflito trabalhista. No Brasil, em geral, há pouco diálogo dentro das empresas e, se o empregado manifestar algum descontentamento, muito provavelmente, será demitido. Não se aceitam manifestações individuais de descontentamento no dia a dia das relações de trabalho. Essa é uma das razões para a enorme quantidade de reclamações na Justiça do Trabalho (cerca de 1,5 milhão por ano). A falta de diálogo impede que os empregados vocalizem suas queixas e os impele a sair. Uma vez fora, reclamam nos tribunais. Certamente, se fossem ouvidos, ficariam mais tempo no emprego e não teriam tanto a reclamar na Justiça do Trabalho.

O acordo Febraban/bancários rompe com essa tradição. Agora o bancário que tiver alguma reclamação pode apresentar sua queixa e o banco terá um prazo de 60 dias para examiná-la e apresentar a resposta. O mais importante é a garantia de não retaliação: ninguém será punido nem demitido por reclamar de algum problema que esteja lhe incomodando no trabalho.

Haverá muitos benefícios para os dois lados. O acordo contribuirá para melhorar o clima de trabalho, porque os empregados poderão se manifestar e serão ouvidos pelas chefias. As empresas identificarão os aspectos mais críticos das relações de trabalho, que agora serão revelados pelas queixas de seus empregados, e poderão adotar medidas de correção. A rotatividade da mão de obra diminuirá, pois com diálogo haverá menos razões para sair. Isso tudo certamente redundará em crescimento da produtividade. Mas o mais importante é o crescimento da transparência e da confiança mútua entre a empresa e seus empregados e o aprimoramento da relação entre todos os envolvidos.

O leitor pode agora comparar os dois mundos. De um lado, normas inventadas em Brasília para empregados supostamente desprotegidos e incapazes. Nesse, os burocratas do Estado consideram-se os únicos capazes de proteger os trabalhadores. Talvez tenham a melhor das intenções, mas, por estarem distantes da realidade, produzem normas descoladas das necessidades concretas das empresas e dos trabalhadores e inibem o amadurecimento das relações de trabalho no País.

Já no mundo das relações de trabalho concretas, há trabalhadores representados por sindicatos, tratando de igual para igual com suas empresas e avançando na autorregulação de suas relações. Para esse mundo, não faz nenhum sentido, por exemplo, impor desde Brasília um sistema de registro de ponto.

O paternalismo e o intervencionismo talvez tenham sido necessários no Estado Novo, quando os trabalhadores brasileiros não estavam organizados. Talvez ainda sejam necessários em alguns segmentos ainda pouco avançados. Mas, hoje, há também um outro Brasil, com empresas e trabalhadores perfeitamente capazes de cuidar de seus problemas sem o controle estatal. Nossas autoridades teriam de levar em conta esse mundo e, em vez de enfatizar a regulamentação do atraso, deveriam ajudar a construir o futuro.


PROFESSOR DA FEA/USP E PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO INSTITUTO BRASILEIRO DE RELAÇÕES
DE EMPREGO E TRABALHO (IBRET)

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