sábado, fevereiro 05, 2011

FERNANDA TORRES

Gauleses

Fernanda Torres 


REVISTA VEJA - RJ
Cresci indo e vindo de um sítio em Venda Nova, na estrada que liga Teresópolis a Friburgo. Mais tarde, criei meus filhos indo e vindo pela mesma rodovia, só que mais adiante, no hotel do meu sogro, o Rosa dos Ventos. Tanto o sítio da minha família quanto o hotel saíram intactos da hecatombe de janeiro que enlameou, arrastou, fez ruir e devastou vales, montanhas, cidades e florestas. Sempre me senti protegida na serra, naquele complexo drástico e extraordinário de montanhas que inclui o Dedo de Deus. Agora vou passar a checar a previsão de tempo cada vez que pensar em ir para lá.
Hoje, 18 de janeiro de 2011, dia em que escrevo esta crônica, fez um calor de rachar no Rio de Janeiro. Peguei uma praia paradisíaca pela manhã e, de tarde, percebi as nuvens se adensando até as alturas. Por volta das 5, o noticiário no rádio do carro avisou que na Tijuca já caía uma chuva respeitável. Não deu meia hora, uma massa monumental cinza-escuro avançou pelas costas do Cristo Redentor. Os trovões e o vento quente anunciaram sua chegada. É curioso como a ventania que antecede a chuva cria barulhos sinistros, portas que batem, madeiras que voam, galhos que se quebram e gritos esparsos.
Quando eu estava grávida, saí para caminhar na Lagoa, era um dia claro, limpo. No primeiro terço do caminho, notei uma nuvem negra surgir por detrás do Sumaré. Não dei bola, o céu estava de um azul-cristal. Quando cheguei à altura do heliporto, um clima de fim de mundo se instaurou ao meu redor. Um vento quente, violentíssimo, arrastava chapas de ferro pelos ares, redemoinhos de poeira se formavam e se desfaziam. As pessoas corriam e muitos gritavam para eu me proteger. Eu e minha barriga, contando apenas com as pernas para chegar a algum lugar, apressamos o passo em busca de abrigo. Em poucos minutos, o dia virou noite e a tromba-d’água caiu sobre a Lagoa. Demorei duas horas de táxi para conseguir voltar para casa, um trajeto que eu faria em menos de quinze minutos a pé.
Durante toda temporada de fim de ano que passei em São Paulo, uma chuva cataclísmica desabava sobre a cidade logo após o meio-dia. De carro, com as crianças no banco de trás, eu procurava chegar a um local seguro toda vez que era surpreendida pela fúria divina. Hoje, olhando a intempérie avançar sobre o Corcovado da varanda de um apartamento no Humaitá, liguei para saber se meus filhos estavam em segurança. Quando cheguei em casa, aliviada com a passagem de mais uma tempestade de verão sem novas catástrofes, vi pela televisão pessoas ilhadas saindo pelas janelas de seus carros em Santo André, na Grande São Paulo. Pensei no que faria naquela situação.
A dimensão do que se passou na Região Serrana do Rio é tão impressionante, a vastidão do tsunami de lama e destroços é algo tão gigantesco, que foge à compreensão. O que resta é a compaixão, uma capacidade extremamente desenvolvida entre os humanos de se pôr na situação do outro e sentir. Que ela nos faça tirar alguma lição desse horror.
A periferia de Teresópolis, que eu vi se desenvolver ao longo da estrada que segue para a Bahia, é formada por barracos equilibrados em encostas íngremes ao longo de um rio. Antes mesmo dos últimos acontecimentos, eu já me perguntava como era possível deixar que a população se instalasse ali. Na subida de Secretário, perto de Pedro do Rio, a cidadezinha que desemboca na BR-040 é formada por casas e pequenos prédios de até cinco andares cujas fundações são fincadas dentro do rio. Dentro. O rio recebe toda a enxurrada que vem das montanhas depois de passar por caudalosas cachoeiras de pedras soltas. O que fazer com aquela vila inteira e milhões de outras visíveis desde a virada da serra?
Eu não sei se sou eu, se é o que está em volta, se é a idade, a maternidade ou a mudança de clima, mas tenho me sentido como Asterix e sua destemida tribo de gauleses. Há 2 000 anos, esse pequeno povoado bárbaro sentia apenas um medo: o de que o céu caísse sobre suas cabeças. Eles não eram muito diferentes de nós.

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