domingo, janeiro 30, 2011

VIVIAN OSWALD e FÁBIO FABRINI

A "canelada" e o dinheiro público
Vivian Oswald e Fábio Fabrini
O GLOBO - 30/01/11


Faltam verbas para programas essenciais, mas sobram para fazer prédios suntuosos

Sem dinheiro para instalar um sistema de alerta contra chuvas e antevendo cortes até no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o país vive uma temporada de contradições orçamentárias que favorecem a elite do funcionalismo público nos três poderes. Embora tenha faltado verba para aplicar R$115 milhões em radares meteorológicos nos últimos dois anos, instalar varas federais no interior e melhorar a qualidade da saúde pública, entre outras prioridades, será pago R$1,2 bilhão só para construir ou alugar suntuosos prédios para órgãos como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a Polícia Federal, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e o Ministério da Cultura.

Na lista das despesas miúdas dos mais diversos órgãos, que também oneram as contas públicas, entram de latas de cerveja, chicletes de menta, bolas de futebol e até evento para afugentar o estresse de servidores.

O Orçamento da União, que em 2011 alcança R$1,394 trilhão, na prática só pode dispor de 10% para gastos que não sejam obrigatórios. O restante já está comprometido com a folha de pagamentos dos servidores, aposentadorias e programas assistenciais, além dos repasses obrigatórios, previstos na Constituição, para bancar Saúde e Educação. É, portanto, numa margem mínima de manobra que concorrem projetos faraônicos, de prioridade questionável, ao lado de investimentos indispensáveis para a população.

- É uma briga muito acirrada, mas de cachorro pequeno. Infelizmente, não há garantia de que seja racional. É a lei da canelada: ganha o mais forte, quem tiver mais poder político - resume o especialista em contas públicas Raul Velloso.

Aluguel, mesmo com prédio cedido

Na queda de braço entre os diversos órgãos da máquina federal, o Ministério da Ciência e Tecnologia bem que tentou, mas não conseguiu emplacar seu plano de radares para monitorar as chuvas, como revelou o secretário demissionário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento, Luiz Antônio Barreto de Castro. Por outro lado, sobrou dinheiro para a Anac se dar ao luxo de gastar R$76,2 milhões com o aluguel de um prédio inteiro em Brasília, mais despesas de condomínio, por cinco anos, quando poderia ocupar, de graça, imóvel cedido pela Infraero.

O BNDES vai gastar, até 2015, R$310 milhões para ocupar 23 andares em um edifício próximo à sua sede no Rio, que está em reforma. O argumento é que o orçamento cresceu, e a estrutura, criada há 30 anos para 1,7 mil funcionários, hoje reúne 2,6 mil. Já o Ministério da Cultura desembolsará R$90,3 milhões no mesmo período para locar oito andares em Brasília. Uma parte ficou desocupada por meses, mesmo após assinados os contratos.

Depois de reformar completamente seu prédio na capital federal, o imponente "Máscara Negra", a PF trabalha no projeto executivo de um novo espigão, a ser erguido no Setor de Autarquias Norte, cujo custo estimado, por baixo, é de R$250 milhões.

A máxima "fazer mais com menos", lançada pela presidente Dilma Rousseff, vale há anos para o Ministério da Integração Nacional. De 2004 a 2010, dos R$2,3 bilhões previstos para o Programa de Prevenção e Preparação para Desastres Naturais, foram gastos R$540 milhões (menos de um quarto).

A despeito dos gargalos e das deficiências de atendimento no Judiciário, o TSE vive um momento à parte: empenhou (comprometeu-se a pagar) R$458 milhões para a obra de sua nova sede em Brasília, com previsão de entrega no segundo semestre e que já estourou o orçamento.

Em outro braço do Judiciário, a Justiça Federal tenta, há décadas, reduzir o déficit de varas de primeira instância país afora, mas os recursos nunca são suficientes para suprir a crescente demanda. Embora sejam verbas de órgãos distintos, os gastos da obra do TSE cobririam a instalação e o funcionamento por um ano de 412 dessas varas.

Especialistas dizem que o Executivo tem pouco a fazer quando os recursos são repassados a outros poderes. E reconhecem que, enquanto alguns órgãos do governo vivem à míngua, outros não têm capacidade de gastar tudo o que receberam.

- A distribuição é só política. Não há espaço para planejamento. É como um orçamento familiar enxuto: como o dinheiro é pouco para todos, o pai dá a parte de cada dependente e diz: "toma e se vira" - compara Velloso.

As grandes contradições da execução orçamentária somam-se a gastos de pequena monta, por vezes inusitados, que oneram os cofres públicos. Nas despesas de custeio dos diversos órgãos, entra de tudo. Por R$1.224, por exemplo, o 4º Batalhão de Infantaria de Selva em Rio Branco (AC) comprou 1,2 mil latas de cerveja em 2010. No ano anterior, o contribuinte pagou a conta de 720 latas de cerveja para o Comando da 12ª Região Militar em Manaus (AM): R$2.185.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) pagou cerca de R$30 mil à empresa de representação que cuidou, em 2007, do evento para gerenciar o estresse de seus funcionários. Já o Supremo Tribunal Federal (STF) desembolsou valor semelhante por 6,5 mil calendários em 2010 e 2011.

Por R$7,9 mil, os freezeres do Gabinete do comandante da Aeronáutica se encheram de 110 quilos de filé de salmão, 110 de filé de robalo, 85 de filé de badejo e 85 de filé de linguado em 2008. De sobremesa, 70 caixas de bombons sortidos. Na lista da Base de Lançamentos de Alcântara, em 2008, ração, vinho e chicletes de menta.

Consultados, o Exército e a Aeronáutica informaram que só a partir de segunda-feira vão poder explicar as compras. O STJ alegou que o estresse é motivo de afastamento de pessoal, o que justifica os eventos. O Supremo, embora questionado, não se pronunciou.

Um comentário:

  1. Prezados Jornalistas, ao ler a Matéria “A ‘canelada’ e o dinheiro público” (O Globo, 30/01/11) que trata das inversões/desvios de verbas públicas, surge um questionamento: até onde vai a ética humana, ou a ausência dela? Pois bem, da mesma monta de preocupação, e ausente nas informações da referida matéria, o que podemos dizer dos desvios acometidos com as verbas de contenção de drenagem nas encostas e áreas de risco, para construção de um museu na zona portuária do Rio de Janeiro. Eis aqui o limite crucial da ética humana. Contratualmente um empregado deve obedecer ao seu dono, mas eticamente agir em nome da verdade, não agir em conveniência com a mentira ou a sua ocultação. É uma contradição, mas uma necessidade imposta pela vida. Nada consta na matéria acerca dos 24 milhões de reais desviados da Fecan para as organizações Globo construir o referido museu. Do ponto de vista do O Globo, perfeitamente entendível a necessidade de ocultação, mas do ponto de vista do ser humano, agente da informação, repugnante a ausência de ética. Um ponto de convergência: “... manobra que concorrem projetos faraônicos, de prioridade questionável, ao lado de investimentos indispensáveis para a população... é a lei da canelada: ganha o mais forte, quem tiver mais poder”. Neste momento em que se explicita a relação da ética com a necessidade de salvar vidas, vide a tragédia serrana, frente à contradição a escolha é inevitável. De nada adianta se auto-justificar (se não for eu a fazer, alguém fará). Chegará o dia em que os mais fortes não terão ao seu lado (mais exatamente abaixo deles) servidores de suas ganâncias. Saudemos a ética!

    Marcelo Queiroz

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