sábado, janeiro 08, 2011

RUY CASTRO

Grande Huck

RUY CASTRO
FOLHA DE SÃO PAULO - 08/01/11
RIO DE JANEIRO - Certa vez, ao saber que seus livros "As Aventuras de Tom Sawyer" e "As Aventuras de Huckleberry Finn" tinham sido proibidos numa escola americana do 2º grau, Mark Twain (1835-1910) exclamou: "Fizeram bem. Estes livros não são para crianças". Podia ser só uma frase de efeito, e podia ser que de fato ele pensasse aquilo.
Mas o que Twain diria de Alan Gribben, o professor de inglês que, em 2010, propôs a uma editora do sul dos EUA sanear "Huck Finn" da palavra "nigger" (crioulo), onde ela aparece 219 vezes, e substituí-la por "slave" (escravo)? A nova versão sai em fevereiro. Para Gribben, "nigger" é tão ofensiva que está afastando os jovens da obra de Twain. Daí, resolveu "corrigi-lo".
Bem, se quisesse, Gribben teria muito mais que "corrigir". Em "Tom Sawyer", um homem é assassinado ao violar um túmulo; outro é emparedado numa caverna e morre de fome depois de comer os últimos morcegos e tocos de vela. Em "Huck", a brutalidade ainda é maior: contém 13 cadáveres, além de cenas de escravidão, guerra, miséria e corrupção. E o herói, o menino Huck, detesta ir à igreja e à escola e tomar banho, e adora andar descalço, dizer palavrões e mentir. Grande Huck.
O próprio Twain tinha ojeriza à religião organizada, abraçava qualquer causa política minoritária e era contra quase tudo o que se referisse à "maldita raça humana". Quando saiu, em 1884, "Huck" era um vasto painel da vida no Mississippi, com seu racismo, atraso, costumes, superstições, jeito de falar etc. Daí "nigger" a três por dois. Mas basta saber ler para entender por que Twain usava essa palavra.
Cem anos depois de morto, Twain é o maior autor, até agora, a ser vítima do "politicamente correto" -nos EUA. Como sempre macaqueamos o que eles têm de pior, já demos o primeiro passo por aqui: vamos sanear a Tia Nastácia de Monteiro Lobato.

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