segunda-feira, janeiro 10, 2011

MARIA INÊS DOLCI

Não mexam no CDC
MARIA INÊS DOLCI
FOLHA DE SÃO PAULO - 10/01/11


PODE PARECER EXTEMPORÂNEO, prezados leitores, invadir esta semana de verão e de férias para milhões de brasileiros com um sinal de alerta sobre ameaças ao Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Preocupações não deveriam ofuscar o sol da praia e da piscina, mas sabemos que as férias passam, enquanto as relações de consumo duram o ano todo. Então, vamos tratar de nossos direitos como consumidores e cidadãos.
O alerta refere-se à comissão de juristas que terá seis meses para "atualizar" o CDC em relação ao fortalecimento dos Procons, ao superendividamento e ao comércio eletrônico.
São bons temas, relevantes para os brasileiros de todas as classes sociais. Provavelmente, a intenção seja nobre, visando ao aprimoramento do CDC. Nunca é demais lembrar, contudo, a velha máxima: de boas intenções o inferno está cheio.
Ou de outra, sob medida para o caso: não se mexe em time que está ganhando.
Toda vez que se debruçam sobre o código sob a alegação de melhorá-lo, hum!, fico um tanto preocupada, desconfiada e assustada. Mesmo que as razões, aparentemente, como já salientei, sejam as melhores possíveis.
Não é segredo para ninguém que muitos grupos de interesse considerariam um grande presente se o CDC fosse extinto. Afinal, é avançado na defesa dos direitos dos consumidores, e isso incomoda demais quem quer o bônus (lucro) sem o ônus (produtos e serviços de qualidade).
Fico à vontade para citar estudo de José Geraldo Brito Filomeno, advogado, consultor jurídico e coordenador-adjunto da comissão que elaborou o anteprojeto do CDC, há mais de 20 anos. Segundo ele, todos os supostos aperfeiçoamentos do código que a comissão terá de fazer já estão contemplados na legislação brasileira.
No caso do superendividamento, o Código de Processo Civil em combinação com dispositivos do CDC seria mais do que suficiente, se houvesse mais e mais juizados especiais cíveis e se fossem preparados juízes e conciliadores para colocar em prática a lei. São providências que não implicam, portanto, alterar o CDC.
Em relação ao comércio eletrônico, defende o especialista que seja reeditada a Medida Provisória nº 2.200, de 28/6/2001, que instituiu a infraestrutura de chaves públicas brasileiras ICP-Brasil, a fim de preservar a integridade, a autenticidade e a validade dos documentos eletrônicos.
Em relação ao fortalecimento dos Procons, ele não vê necessidade de qualquer medida que não o aperfeiçoamento da organização e da coordenação dos trabalhos dos diversos órgãos públicos de proteção e de defesa do consumidor.
Concordo com o ilustre especialista. O CDC é propositalmente genérico, evitando os problemas de nossa Constituição Federal, tão detalhada que se torna datada. Porque quanto mais uma legislação adentra em minúcias, menos tempo dura.
É óbvio que as novas tecnologias e até as mudanças na estrutura social e econômica brasileira devem ser acompanhadas pelo CDC. Mas essa revisão não me parece necessária no momento. Na verdade, seria bem mais produtivo fiscalizar o cumprimento do que já está na lei e não é cumprido.
Não vamos permitir a progressiva mutilação do Código, por meio de alterações pontuais de cunho eminentemente político. Nenhum reparo à comissão de juristas. Tudo contra a intervenção no CDC e o risco de que o desfigurem no Congresso.
Ao se abrir uma porta ou uma janela jurídica, já não se sabe até que ponto não "contrabandearão" reduções na abrangência e na eficácia de uma das melhores legislações de proteção dos direitos do consumidor do mundo.
Não há muitas leis que pegaram no Brasil positivas para os cidadãos. Porque leis, em geral, são feitas para resguardar os direitos dos detentores dos poderes políticos e econômicos. Talvez o código só tenha sido aprovado porque não acreditassem que seria um sucesso tão grande.
Isso, porém, não é o que importa. Fundamental é manter suas conquistas. Deixem o CDC em paz!

MARIA INÊS DOLCI, 54, advogada formada pela USP com especialização em business, é especialista em direito do consumidor e coordenadora institucional da ProTeste Associação de Consumidores.

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