domingo, janeiro 23, 2011

MARCEU VIEIRA

A palavra é... alto-falante
Marceu Vieira
O GLOBO - 23/01/11
Num tempo dominado por celulares modernos, e-mails e redes sociais de internet - além, é claro, da TV e do meu, do seu, do nosso bom e velho rádio -, muitas vidas só puderam ser salvas da tragédia das enchentes na Região Serrana do Rio porque havia um... alto-falante, a rudimentar mídia eletrônica surgida em 1924, quase 30 anos antes da televisão e há mais de 50 da chamada web (web é o cacete!).
Como se sabe, na cidade serrana de Areal, minutos antes do aguaceiro que devastou tudo, um carro de som avisou às pessoas para saírem, pois a catástrofe estava a caminho. Enquanto isso, em bairros elegantes das vizinhas Nova Friburgo e Teresópolis, debaixo d"água, os telefones ficaram mudos, iPhones viraram simples brinquedos para jogar, computadores, sem conexão, tornaram-se trambolhos obsoletos e, na falta de energia, não havia nem TV.

Não foi à toa que a prefeitura do Rio anunciou, semana passada, a instalação de 60 sirenes e alto-falantes em locais de risco para alertar a população em caso de temporal.

Na verdade, a volta do alto-falante remete a tempos mais românticos, em que se namorava na praça ao som de Mário Reis, por exemplo, interpretando Noel Rosa. Era uma espécie, digamos, de primeira rede social, "rádios de poste" que, além de música, davam notícias, anunciavam casamentos, funerais, batizados...

- Quando eu era menino, em Feira de Santana (BA), havia a Rádio Dudinha, de alto-falantes, mais ouvida do que a única emissora de lá, a Rádio Sociedade. Era o principal meio de comunicação de Feira - lembra Muniz Sodré, 69 anos, ex-presidente da BIBLIOTECA NACIONAL, professor da UFRJ, ele mesmo um dos maiores teóricos brasileiros da comunicação, autor de dezenas de livros e artigos sobre o tema, e também de um romance ("O bicho que chegou à Feira"), em que fala de um... alto-falante.

Aliás, por causa do alto-falante, o BRASIL, lembra Muniz, ganhou o talento de Caetano Veloso, acredite. É que Caetano, graças às músicas que ouvia pela "rádio-poste" de Santo Amaro, também na Bahia, foi bem-sucedido no PROGRAMA "Esta noite se improvisa", apresentado nos anos 1960 por Blota Jr. Caetano venceu a disputa comandada por Blota, que popularizou no país a expressão "a palavra é...", bordão do PROGRAMA.

- Era assim. Blota dizia uma palavra, e o candidato tinha de cantar uma música com ela. Caetano era incrível. Conhecia músicas com qualquer palavra - recorda Muniz.

Há provas mais contemporâneas do valor do alto-falante. A Rádio Saara, por exemplo, chega a ser ouvida por mais de 100 mil pessoas por dia, segundo a administração da Saara, sigla de Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega, shopping popular a céu aberto no Centro e do Rio.

Alguns anúncios da Rádio Saara, que, entre outros serviços, dá notícias e ajuda a encontrar crianças perdidas, já foram decorados pela multidão que cruza seu conjunto de ruas diariamente. Um VALE citação. Um locutor e uma locutora, com vozes desafinadas, dizem:

- Arlete! Arlete! Como você está bonita! Parece uma rainha!

- Ah, Aguinaldo, é que eu estou num palácio! O Palácio dos Cristais. Rua Senhor dos Passos 81, aqui na Saara!

- Mas... Arlete! Quem é esse a seu lado?!

- Ah, é o sr. Swarovski, quem mais entende de cristais! Não fique com ciúmes, Aguinaldo!

Viva o alto-falante!

Aliás, outra mídia eletrônica das antigas, o radioamador, criado no fim do século XIX, também foi importante nessa tragédia na Região Serrana. Mas aí é outra história.

Marceu Vieira

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