sexta-feira, dezembro 31, 2010

MARCOS SÁ CORRÊA

Não custa lembrar que o mundo gira
MARCOS SÁ CORREA
O Globo - 31/12/2010
Nada como a reciclagem de uma velha notícia para entrar no réveillon sabendo que, apesar dos pesares, o mundo ainda dá voltas ao redor de si mesmo. Trata-se da história contada esta semana pelo repórter Cesar Baima sobre água do lago Blue, no Alasca, que será exportado por duas empresas para uma engarrafadora na Índia e, de lá, para o Oriente Médio. Sinal dos tempos, certo?

Nem tanto. No verão de 1844, estreou em Londres a filial da Wenham Lake Ice Company, de Boston. Expunha na vitrine um bloco translúcido de gelo. Tirado de glaciações nos Estados Unidos, era tão cristalino que, através dele, lia-se o jornal do dia, como atestado de pureza.

O truque publicitário embasbacou os londrinos, que nunca tinham visto gelo assim. A rainha Victoria credenciou a Wenham como provedora de Buckingham. O novelista William Thackeray engastou o inédito mineral precioso numa de suas tramas de ficção. Foi um sucesso retumbante.

E breve. A Noruega, bem ali ao lado, rapidamente invadiu o mercado britânico com seu próprio gelo de Wenham. Vinha do lago de Oppengaard, perto de Oslo. Estava dispensado de cruzar o Atlântico. E, para pegar a onda americana, o lago foi rebatizado. De Oppengaard, virou Wenham, como o precursor já notório.

Tudo isso se deve à obstinação de Frederic Tudor, um bostoniano bem-nascido que dissolveu a fortuna da família para implantar o comércio ultramarino de um produto que ninguém precisava fabricar, por ser fornecido pela natureza a céu aberto em quantidades aparentemente ilimitadas.

Bom, bonito e barato, o produto só tinha duas contraindicações. Era imune a patentes. E tendia a passar do estado sólido ao líquido durante a viagem. Coube ao dinheiro de Tudor bancar as experiências que derreteram a relutância dos armadores em carregar navios com o que, no fundo, era só água.

Sua primeira remessa de três toneladas descongelou num porto da Inglaterra, enquanto os fiscais da alfândega coçavam as cabeças para classificá-la. Aos poucos, Tudor acabou concluindo que blocos compactos e grandes, envoltos em serragem - por sinal, outro artigo então invendável - podiam ir de Boston a Bombaim.

Aliás, o gelo fez com frequência a circunavegação das Américas, para chegar da costa leste à Califórnia, via cabo Horn. No fim, Tudor não criou o que hoje se chama "negócio sustentável". E seu lago de Wenham virou reservatório de Boston. Mas, a suas custas, ele mudou para sempre os costumes e a economia do planeta.

O gelo itinerante universalizou o consumo popular do sorvete, conhecido desde o Império Romano como requinte sazonal e raro. Permitiu que a carne argentina conquistasse o Hemisfério Norte, a lagosta do Pacífico viajasse a Chicago e as frutas tropicais debutassem no inverno europeu. Só na rede ferroviária dos Estados Unidos, até a década de 1930, circulavam mais de 180 mil vagões frigoríficos, refrigerados a gelo.

Esquecidos, o triunfo e o fiasco de Tudor voltaram à tona ultimamente, na enxurrada de livros que anunciam, sobretudo em inglês, o advento da era em que a água e seus derivados serão monopolizados pelos espertos. O escritor americano Bill Bryson pescou-os numa dessas publicações, tornando a história de Wenham mais palatável em "At Home" - uma dissertação enciclopédica sobre sua velha casa em Norfolk, num cafundó da Inglaterra. Bryson anda empenhado em mostrar que a natureza não parece, mas tem preço.

E, dito isso, feliz Ano Novo!

MARCOS SÁ CORREA é jornalista

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