terça-feira, dezembro 21, 2010

GIL CASTELLO BRANCO

Emendas de araque e ONGs fantasmas
GIL CASTELLO BRANCO
O GLOBO - 21/12/10


Dizem que o primeiro "desvio" da nossa história foi o de Pedro Álvares Cabral, que navegava para as Índias e acabou atracando na costa brasileira. De lá para cá, os desvios passaram a ser mais orçamentários do que geográficos.

Há quase um século, Ruy Barbosa afirmou, em frase célebre, "o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto". Atualmente, a preocupação não é diferente. Conforme pesquisa da Transparency International, seis em cada dez brasileiros acham que a corrupção aumentou nos últimos três anos. A boa notícia é que em todo o mundo as pessoas não estão conformadas com a escalada da roubalheira. Em cada dezena de cidadãos, sete estão dispostos a denunciar um ato de corrupção, caso venham a testemunhá-lo.

No Brasil, o recente escândalo das emendas parlamentares para as áreas de Cultura e Turismo repetiu o que acontece há duas décadas. Em 1991, matéria do jornalista Mário Rosa ganhou o Prêmio Esso de Informação Política abordando repasses da Legião Brasileira de Assistência para entidades privadas de Alagoas, administradas por parentes da então primeira-dama Rosane Collor. Em 1993, surgiram os "Anões do Orçamento", remetendo dinheiro público para entidades filantrópicas ligadas a parentes e laranjas. Em 2006, apareceram os sanguessugas propondo a compra de ambulâncias superfaturadas. Em resumo, tudo muito parecido envolvendo, quase sempre, emendas ao Orçamento, parlamentares, empreiteiras, prefeituras e organizações não governamentais (ONGs). Quase um crime continuado.

A bola da vez é, principalmente, o Ministério do Turismo. A fórmula é simples. Um parlamentar apresenta emenda orçamentária destinando recursos para determinada entidade privada realizar evento turístico. A ONG fajuta recebe a verba e contrata uma produtora para realizar o evento. A festa acontece por preço inferior ao montante proposto na emenda, mas notas fiscais falsas justificam o valor original. Assim, sobra grana para dividir entre as partes.

É no mínimo curioso o megainteresse dos parlamentares pelo turismo. Acreditem ou não, os nossos representantes propuseram para 2011 emendas no valor de R$6,2 bilhões para o Ministério do Turismo, enquanto sugeriram R$4,6 bilhões para a Educação e somente R$1,5 bilhão para o Meio Ambiente. Uma única ação, "promoção de eventos para a divulgação do turismo interno", recebeu 372 emendas, que totalizaram R$257 milhões. De forma ingênua ou irresponsável, grande parte dos deputados e senadores aderiu à emenda da moda.

A Controladoria-Geral da União (CGU) corre atrás do prejuízo, literalmente. Descobriu, por exemplo, que em Alto Paraíso (GO), cidade distante pouco mais de duas horas da capital federal, Aline Brazão tinha sido dirigente de 45 entidades sem fins lucrativos. Ao mesmo tempo, Antônio Vieira criava e colocava à venda ONGs e organizações da sociedade civil de interesse público (Oscip). No Google, um anúncio escancarava a bandalheira: "Compre sua Oscip já aprovada e comece a operar imediatamente." Desta forma, por R$22 mil qualquer espertalhão poderia adquirir uma Oscip registrada, com CNPJ e devidamente certificada pelo Ministério da Justiça. Como no país da jabuticaba a maioria das ONGs vive às custas de recursos públicos, o investimento proposto pelo "cambista de Oscips" era altamente rentável. Só no Orçamento federal deste ano existem R$4,5 bilhões destinados a entidades privadas sem fins lucrativos. Com a papelada regularizada bastava encontrar parlamentar disposto a fazer uma emenda e participar da negociata.

Em vista da dimensão do escândalo, as fraudes não podem ser tratadas caso a caso, e sim de forma sistêmica. Acabar com as emendas individuais seria ótimo, mas improvável. Assim, é essencial que o Executivo promova o recadastramento das ONGs e Oscips que recebem recursos públicos. Além disso, que passe a divulgar amplamente as informações do Siconv - Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasses -, onde constam os nomes das entidades e seus dirigentes, estatutos, atas, certidões negativas, cartas de recomendação, objetivos dos convênios, programas de trabalho, prestações de contas e até o extrato da conta bancária criada para movimentar os recursos. Com a transparência, a própria sociedade irá separar as entidades e os parlamentares sérios dos de araque.

Afinal, o único desvio que os brasileiros aceitam, para sempre, de bom grado, é o de Pedro Álvares Cabral...

GIL CASTELLO BRANCO é economista e fundador da organização não governamental Associação Contas Abertas.

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