domingo, dezembro 19, 2010

CAETANO VELOSO

 Rock
Caetano Veloso
O GLOBO - 19/12/10

Quando Elvis apareceu eu não dei muita importância. As fotos dele na revista “O Cruzeiro” me repugnavam
Em 1956 eu tinha 13 anos e morava no Rio. Nunca tinha visto televisão. Foi o ano em que Elvis apareceu. Ouvi Nora Ney cantar “Rock around the clock”. Eu gostava de rádio e conhecia muitas canções de vários tipos. Não tinha nem um esboço de critério crítico. Ou será que teria? Meu pai gostava de Noel Rosa. Dizia que a letra de “Três apitos” era a melhor de todas as letras de canções. Mas ele não cantava. Minha mãe cantava e assoviava. Tínhamos um álbum de Aracy cantando Noel. Era uma caixa de discos em 78 rotações.
A capa era de Di Cavalcanti. Eu pintava e queria ser pintor, mas acho que não sabia nada sobre Di. E tendia a saber tudo sobre Noel, Aracy e Dorival Caymmi. Para além disso, havia todas as canções do rádio, os sambas de roda e o maculelê.

Quando Elvis apareceu eu não dei muita importância. As fotos dele na revista “O Cruzeiro” me repugnavam. No Rio, eu via todos os ídolos da música no auditório da Rádio Nacional. Aqui ou em Santo Amaro, canções americanas, cubanas, argentinas e mexicanas eram quase tão frequentes quanto as brasileiras. Versões. Tudo. Millôr diz que a música é a única arte que te ataca pelas costas.
Agora mesmo eu estava conversando com um rapaz muito jovem e muito inteligente sobre as ideias de Moniz Sodré a respeito da coincidência entre predomínio da visualidade e crescimento do superindividualismo. O Ocidente teria, com a facilitação da mudança de pontos de vista (pela criação de veículos cada vez mais velozes), intensificado a característica individualista da observação visual, enquanto a experiência sonora é fatalmente comunitária. Eu queria ser pintor e me ligava na canção. Em 1959, ainda em Santo Amaro, ouvi João Gilberto e achei que o Brasil tinha uma tarefa grandiosa.
Não eram mitos saídos de hinos: era a experiência palpável. Nunca mais me apartei dessa perspectiva. A partir daí, formou- se um critério crítico — para as canções, a pintura, a literatura e tudo o mais. Eu cantava boleros de Anísio Silva e guarânias paraguaias mas sabia de João Gilberto. Rock era música americana comercial, feita para jovens ignorantes. Eu nem desgostava. Cantava “Oh, Carol”, “Little darling”. Mas sabia de João Gilberto.

Hoje é difícil fazer as pessoas sentirem que o rock foi primeiro rejeitado como lixo. Em quatro décadas, o problema se inverteu: rock passou a ser o lado chique da canção popular. Um amigo americano um tanto mais moço do que eu não sente o peso da reação a Dylan por parte de cultores do folk quando ele cantou com uma banda de rock.
“Aquilo (a reação) não durou nem 15 minutos”, ele diz. Não é verdade. O próprio Dylan, em “Crônicas”, descreve o ambiente que frequentava: o gosto ali cultivado incluía a rejeição ao rock. Cultuava-se também a bossa nova brasileira (ele cita João, Lyra e Menescal).
É significativo que as listas de melhores canções rock de todos os tempos, feitas por rockmaníacos que cresceram no mundo pós- Beatles, sejam sempre encabeçadas por “Like a rolling
stone”, canção de Dylan que, por ter tido um arranjo rock, motivou a agressão que ele sofreu (com vaias do público e tentativas de boicotes por parte de colegas). Ou seja, a maior canção rock não é uma canção rock, mas uma canção folk pretensiosa a que o autor teve a coragem de dar tratamento rockeiro. Merece encabeçar listas porque contém todo o drama do gênero para se afirmar, não por ser um exemplo típico ou puro.

Raul Seixas e Jorge Mautner, para citar apenas dois nomes da minha geração (e brasileiros, pois não foi tão diferente nos países de língua inglesa como se é levado a crer), me assombram por terem sido capazes de captara intensa energia históricaque se concentrou na figura de Elvis. Eu não tinha essas antenas. Tanto quanto Dylan, precisei da tradução dos Beatles. O fato é que o rock representou uma revolução.
Foi ponta de lança na virada de um mundo individualista visual para um mundo de buscas de novos estados de comunhão. Não é por acaso que oscríticos posudosda imprensa inglesase enamoraram (sem entender) da “teoria francesa”: as modas de “Hair” e as profecias de M c L u h a n s o a - riam redundantes, enquanto as c o m p l i c a ç õ e s gaulesas enriquecem o folclore do mistério do rock. O nome do mistério é energia histórica: algo reúne fatores que deflagarão grande câmbio estrutural. Ao rock devemos, entre mil coisas, o funkdo Rio ser a um tempo desejo de imitar Miami e renascimento do maculelê de Santo Amaro. As formas enviesadas de prometer fins de mundo que se leem nos autores franceses amados por revistas de rock inglesas servem como propaganda do mistério. Sinto-me atraído pelo rock presunçoso feito por gente esquisita, mas não pela teoria francesa. Prefiro Moniz Sodré. A música liderou uma virada que tem a ver com tudo isso (Sodré, McLuhan, “Hair”, pós-estruturalistas).
Mas é música: está agindo na matéria do mistério — a energia histórica —, não nos conceitos embaralhados que — como diz João Gilberto — atrapalham o processo. É como “Film socialism”: há cinema ali que vale por si. A argumentação não diz nada. Godard fez filme com os Stones. Ostentando distanciamento. Mas seu cinema é mais rock‘n’roll do que socialismo. Arte visual antivisual, sons antimúsica, extremo individualismo em projetos comunitários, isso tudo é familiar ao artista.
Construir textos explicativos que deem conta disso é terreno estrangeiro. A coluna concorre com os franceses?
Ilogismos. Feliz ano novo.

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