sábado, novembro 20, 2010

ROBERTO DELMANTO JUNIOR

Reforma política e igualdade no Judiciário
Roberto Delmanto Junior 


O ESTADO DE SÃO PAULO - 20/11/10
A presidente Dilma Rousseff, com apoio da maioria no Congresso, terá todas as condições de levar adiante a reforma política, indispensável para a sobrevivência da democracia brasileira, extirpando vícios que comprometem a legitimidade e a representatividade de nossos parlamentares, e a punição da corrupção. Além de abranger questões como o financiamento de campanhas, a obrigatoriedade do voto, os desconhecidos suplentes de senadores e deputados que assumem postos sem legitimidade, a farsa dos candidatos "puxadores de voto", que alçam ao Congresso pessoas com inexpressiva votação, a reforma deve abordar um dos maiores dogmas de nosso Poder Judiciário: o "foro especial", herdado do Império.
Com o "foro especial por prerrogativa de função", também chamado "foro privilegiado", autoridades que cometem crimes não enfrentam um processo criminal como qualquer cidadão. No Legislativo, deputados estaduais são julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ); deputados federais e senadores, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Já no Judiciário, juízes de primeiro grau são julgados pelo Tribunal de Justiça (TJ) ou pelos correlatos Tribunais Regionais Federais; desembargadores, pelo STJ; membros do STJ, pelo STF, cujos ministros, se cometerem crimes, são julgados por seus pares. No Poder Executivo, prefeitos são julgados pelos TJs; governadores, pelo STJ; o presidente da República, o vice e os ministros de Estado, pelo STF.
Acontece que os tribunais nunca estiveram preparados para instruir processos. O exemplo do STF é emblemático. Desde 1988, somente em 2010 um deputado federal - José Tatico (PTB-MG) - acabou condenado a efetiva pena privativa de liberdade: sete anos de prisão. E seu julgamento só ocorreu, como observou o Estado no editorial O atoleiro do Supremo (30/9, A3), porque ele estava na iminência de completar 70 anos, o que ensejaria a prescrição.
Os argumentos dos que defendem o foro especial trazem a ideia de fragilidade e instabilidade do juízo de primeiro grau, que poderia ceder a pressões políticas em razão do status e do poder do acusado. Na inglória defesa do foro especial argumenta-se que ele existe para "proteger" as próprias instituições e, no caso do Poder Judiciário, a sua hierarquia, alegando ser inconcebível um juiz julgar um desembargador. Sustenta-se, ainda, que o foro especial não fere o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei por não ser "privilégio pessoal", mas decorrência do cargo. Isso porque, se durante o processo o acusado deixar o exercício da função, o processo vai para o juiz de primeiro grau, como noticiou o Estado (Candidatos ficha-suja perderão foro privilegiado, 6/10).
Nessa linha, o ministro Cezar Peluso, presidente do STF, declarou em 12 de maio último que o fim do foro especial seria inviável, sendo ele uma garantia de imparcialidade dos julgamentos, um instituto essencial para o exercício das funções das autoridades públicas. Com todo o respeito ao presidente de nossa Suprema Corte, é notório o desserviço do "foro especial" à democracia brasileira, sobretudo quando falcatruas são cometidas por homens públicos, como parlamentares, durante o exercício do mandato.
A maioria das ações penais arrasta-se por décadas, com o melancólico término da prescrição, ou, uma vez cessado o cargo do acusado, remetidos os processos ao juiz de primeiro grau, que analisará tudo de novo! Nos raros casos em que a prescrição não ocorre, o foro especial também é prejudicial aos réus, já que eles não têm o elementar direito de apelar.
Não é sem razão que várias vozes, inclusive a nossa, lutam pela extinção ou redução do foro especial, como a do ministro Celso de Mello, também do Supremo: "Sou a favor da supressão pura e simples da prerrogativa de foro em relação a qualquer autoridade pública. Que os magistrados de primeira instância sejam os juízes naturais de todas as causas envolvendo políticos."
Inexiste razão suficiente para que o juiz de primeiro grau não possa julgar um senador, um deputado federal ou estadual, um ministro, um promotor de Justiça ou mesmo um juiz acusado de peculato ou estupro. Igualmente o Tribunal do Júri, se acusados de homicídio.
Afinal, os juízes de primeiro grau têm as garantias de inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos e vitaliciedade no cargo, protegendo-os de pressões. E contra abusos, existem apelações, agravos, habeas corpus e mandados de segurança.
As únicas figuras públicas para as quais, a nosso ver, o foro especial encontra justificativa plausível são o presidente e o vice-presidente da República e os governadores.
Quanto ao presidente e ao vice, diante da necessidade de estabilidade política que seu cargo demanda. Mesmo com autorização do Congresso Nacional, deixar um promotor e um juiz de primeiro grau, respectivamente, acusar e julgar o presidente da República ou seu vice, enquanto no exercício do mandato, não é adequado. E os governadores, em razão de sua forte influência em todos os poderes locais, até mesmo em relação ao orçamento do Poder Judiciário. Basta lembrar o forte controle sobre a Polícia Civil, cujos delegados podem a qualquer momento ser transferidos. Os recentes casos do Amapá e do Distrito Federal são emblemáticos.
Pela extinção do foro privilegiado tramitam duas propostas de emenda constitucional: uma, apresentada pelo senador Gerson Camata (PMDB-ES), a PEC 81/2007, e a outra, de autoria do deputado Marcelo Itagiba (PSDB-RJ), a PEC 130/2007.
Resta a nós, "pobres mortais" da planície, aguardar e cobrar mudanças daqueles que se beneficiam do "foro especial", lá no Planalto.
ADVOGADO, CONSELHEIRO DA OAB-SP, PROFESSOR DA FGV-LAW E DA ESA-SP, MESTRE E DOUTOR EM DIREITO PELA USP, É COAUTOR DO ‘CÓDIGO PENAL COMENTADO’

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