terça-feira, novembro 23, 2010

MÍRIAM LEITÃO

As crises são iguais
MÍRIAM LEITÃO
O GLOBO - 23/11/10


O que um país de 4,5 milhões de habitantes, com menos gente que no Rio de Janeiro, pode fazer ao mundo? Outra dúvida: como um país que foi apontado como exemplo durante anos e que cresceu em ritmo chinês pode estar em recessão, com deflação, e com risco de dar calote na dívida? Terceira questão: como negociar com um país cujo governo está caindo?

As dúvidas irlandesas derrubam mercados e preocupam. O Partido Verde disse que sairia da coalizão de governo e dois parlamentares independentes avisaram que não votarão o Orçamento. O primeiro-ministro, Brian Cowen, está resistindo mas disse que depois da aprovação do Orçamento vai dissolver o Parlamento. As autoridades do BCE, FMI e Reino Unido estariam negociando um pacote bilionário, que significa a metade do PIB da Irlanda, com um governo com os dias contados.

Esse é mais um dos inusitados desse mistério irlandês. O melhor aluno da classe está em recuperação. Por 20 anos, a Irlanda foi exemplo de disciplina fiscal: reduziu a dívida pública de 108% do PIB, em 1986, para 25%, em 2007 (vejam no gráfico). O PIB cresceu em média 7,4% ao ano de 1995 a 2007. Falava-se de milagre irlandês. O país era apontado como exemplo e havia mil explicações para o seu sucesso.

O problema é que parte do crescimento é resultado de uma bolha imobiliária. O preço dos imóveis subiu 315% de 1996 a 2007. De lá para cá, caiu 36%, tirando renda das famílias e causando prejuízos bancários bilionários.

-A crise da Irlanda em muitos aspectos se parece com a dos americanos e ingleses: uma economia que estava crescendo fortemente, com liquidez enorme a juros baixos e pouca regulação. Os bancos ficaram muito expostos a ativos imobiliários, com alavancagem excessiva. Em 2008, a bolha imobiliária estourou e tanto o sistema financeiro quanto as famílias ficaram com problemas ? conta o economista Roberto Padovani, do WestLB.

A notícia que causou espanto ontem foi o tamanho do resgate anunciado à Irlanda, de 90 bilhões, ou metade do PIB irlandês. Outro número inacreditável é a projeção de déficit do governo para este ano: 32% do PIB.

Parece até erro. Isso tudo é déficit ou dívida? É mesmo déficit, que fará a dívida subir para 93% este ano, e superar a marca dos 100% no ano que vem. Todo o esforço feito em 20 anos pelo tigre celta foi por água abaixo em apenas três anos, de 2008 a 2010.

O governo explicou que o socorro ao sistema financeiro é responsável por 20% do déficit de 2010. Ele expõe a fragilidade dos bancos, que, por um lado, foram atingidos pela bolha imobiliária e, por outro, sofreram de crise de confiança e saques dos correntistas. Do pacote, imediatamente serão repassados de 8 a 12 bilhões aos bancos, para impedir que eles fiquem sem liquidez. Desde 2008, eles já receberam 45 bi, contando a injeção de 12 bi de setembro. É o segundo socorro em três meses.

O problema é agravado porque o governo irlandês está endividado e agora ficará mais. Ou seja, o risco do sistema financeiro está se transformando em risco de dívida soberana, na medida em que os governos assumem os problemas bancários.

Em outubro, a Moody"s colocou sob perspectiva negativa o rating Aa2 da Irlanda e agora diz que o mais provável é que ela perca de uma vez o grau de investimento. Esse é um dos vários problemas da questão. Por um lado, o pacote de auxílio vai aumentar ainda mais a dívida do governo. Por causa disso, haverá diminuição do rating, que tornará os empréstimos mais caros daqui para frente. Por outro, as medidas de austeridade fiscal devem diminuir a demanda e isso pode ter reflexo no crescimento e na arrecadação do governo.

Parece o oposto da célebre frase da obra de Tolstoi "Ana Karenina", de que todas as famílias felizes são iguais; as infelizes o são cada uma à sua maneira. Os países em suas tragédias econômicas parecem todos iguais. Os bancos emprestaram irresponsavelmente, as pessoas foram ficando mais endividadas, pensando que estavam ficando ricas. Quando a bolha estoura, os ativos entram em queda livre, o governo aumenta os gastos para salvar os bancos e evitar o colapso da economia. Por causa do socorro, o déficit aumenta, os governos têm que pagar juros altos nas suas dívidas, as agências de rating rebaixam a avaliação dos países, alguma entidade estrangeira resgata o país e impõe ajustes. A dívida sobe mais ainda e os bancos exigem mais juros para rolar a dívida. Parece uma pessoa frágil com um trem vindo na direção contrária.

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