quarta-feira, novembro 17, 2010

GUILHERME AMORIM CAMPOS DA SILVA

O papel do Judiciário na democracia brasileira
Guilherme Amorim Campos da Silva 


O Estado de S.Paulo - 17/11/10
Em editorial de 30 de outubro (A3), o Estado alertou para o uso abusivo da ação popular com objetivos políticos, desvirtuados de sua finalidade legal. E condenou a ausência de mecanismos adequados para coibir essa prática irresponsável.
No dia seguinte, o jornal reportou relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que mostra a existência de mais de 3 mil condenações em ações civis por improbidade administrativa, a partir de dados colhidos nos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal.
As referidas abordagens remetem ao tema das ações de controle do poder público e da participação responsável da cidadania no trato da coisa pública.
A ação popular tem previsão no ordenamento brasileiro que remonta à Constituição imperial de 1824, a qual a inseriu expressamente em seu artigo 157, com a finalidade de permitir a qualquer do povo resguardar o interesse público. E hoje não é diferente.
A Constituição federal de 1988 consagra-a como instrumento de participação política do cidadão, no artigo 5.º, inciso LXXIII. E o seu uso deve ser consciente e responsável. Tanto que a Constituição prevê a isenção de custas judiciais e ônus de sucumbência para estimular o cidadão a comprar a briga em assuntos de interesse da coletividade, ressalvada, contudo, a sua "comprovada má-fé". Nesta hipótese, o cidadão fica sujeito a arcar com todos os custos do processo, e com a possibilidade de aplicação de multa pelo juiz. A existência de ações temerárias ou com finalidades políticas pode dar ensejo ao seu pronto arquivamento por decisão judicial.
A disciplina da matéria, portanto, é completa. Basta que o Poder Judiciário exerça a sua função jurisdicional, evitando a profusão de ações com caráter meramente político.
De outro lado, algo similar existe com a multiplicação de ações civis de improbidade administrativa. A introdução de ação civil pública no País, em 1985, em pleno processo de redemocratização, e sua previsão constitucional em 1988, atribuindo ao Ministério Público a sua titularidade, ampliaram as possibilidades de controle do interesse público. A entrada em vigor da Lei n.º 8.429/92 - Lei da Improbidade Administrativa - deu ensejo à distribuição de milhares de ações por todo o País.
Fenômeno similar ao da ação popular ocorreu: proposituras indiscriminadas, com fins ideológicos, por vezes pautadas em interpretações pessoais da lei, ou ainda, e o que é pior, com objetivos políticos.
Tendo em vista as graves penas contidas na referida lei - que preveem restrições de direitos, como a suspensão dos direitos políticos por prazo máximo de oito anos -, a edição da Medida Provisória 2.225/2001 tornou obrigatória a intimação dos acusados para apresentação de defesa prévia e a demonstração pelo Ministério Público de que suas iniciativas são adequadamente constituídas. Dessa forma, quebrando-se o círculo vicioso de distribuir ações que condenam antecipadamente os réus e se constituem, de per si, em ações que objetivam a colheita de informações que o Ministério Público poderia ter obtido em sede preliminar, por meio da instituição de inquéritos civis, por exemplo.
E o que se tem verificado? Que o Poder Judiciário tem feito tábula rasa da previsão de defesa prévia, incluída no artigo 17, parágrafo 7.º, da Lei n.º 8.429/92, sob o argumento generalista de que, havendo suspeita na prática de qualquer ato, cumpre esgotar a sua apuração no decorrer do processamento das ações.
Ora, a defesa prévia foi constituída justamente para se afastarem as iniciativas processuais que revelassem meras suspeitas. Na prática, portanto, o que ocorre é que em ações de improbidade o réu é que tem de provar, desde o início, que é probo e honesto, em verdadeira inversão de valores constitucionais.
A profusão desmesurada dessas ações é ainda mais grave, tendo em vista que o Ministério Público exerce função constitucional, sendo sua estrutura, servidores e promotores - remunerada com dinheiro público.
Daí por que o dado tornado público pelo Conselho Nacional de Justiça deve ser aceito com reservas. Ou seja, a informação deveria ser mais ampla, de modo a possibilitar a revelação do grau de eficiência da instituição ministerial: em todo o País, quantos inquéritos civis existem? Quantos há mais de seis meses? Quanto custam aos cofres públicos? Quantas ações de improbidade existem em todo o País? Quantas foram arquivadas de plano pelo Poder Judiciário por serem manifestamente improcedentes? Quantas foram arquivadas pelo Poder Judiciário em razão de defesas prévias apresentadas e aceitas pelo juiz ou pelo Tribunal de Justiça? Quantas ações foram julgadas procedentes e quantas improcedentes? Quantas transitaram em julgado? E quantas foram efetivamente executadas, revertendo valores aos cofres públicos?
Essas informações poderiam constituir indicadores de eficiência e demonstrariam a importante relação de custo-benefício dessas iniciativas e revelariam, também, o comportamento do Poder Judiciário em relação a eventuais ações propostas pelo Ministério Público que pudessem indicar desvirtuamento das previsões constitucionais e legais em vigor no ordenamento jurídico.
Frise-se, finalmente, que tanto no caso da ação popular como no da ação civil pública de improbidade administrativa o Poder Judiciário deve exercer papel que crie obstáculos ao prosseguimento de quaisquer iniciativas temerárias, ineptas ou com objetivos políticos, porque a profusão do uso desvirtuado pode levar ao comprometimento da própria garantia constitucional. Aqui se revela um aspecto cultural, de funcionamento das instituições, que encontra, sem sombra de dúvidas, condições para aprimoramento.
O uso responsável dos instrumentos assegurados na Constituição federal e o funcionamento consciente dos Poderes constituídos da República só podem contribuir para esse aperfeiçoamento das instituições e da participação da cidadania nos assuntos de interesse coletivo.
ADVOGADO, MESTRE E DOUTOR EM DIREITO DO ESTADO PELA PUC-SP 

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