domingo, novembro 21, 2010

CELSO LAFER

Ruth por Ignácio
Celso Lafer 


O ESTADO DE SÃO PAULO - 21/11/10
A biografia é um gênero difícil, posto que exige combinar História e estória. Requer, por isso mesmo, tanto o empenho e a dedicação na pesquisa dos fatos quanto a qualidade de um texto que, numa unidade narrativa, seja capaz de bem contar uma estória de vida. Seguir a ordem cronológica contribui para a tessitura da narrativa e, por isso, é um dos preceitos usuais na elaboração de uma biografia. Permite, com efeito, indicar como uma pessoa, na sua singularidade, foi, no correr do tempo, lidando com o seu potencial de possibilidades no confronto com as múltiplas circunstâncias do seu percurso. Foi este preceito que Ignácio de Loyola Brandão seguiu na elaboração do seu recém-publicado livro Ruth Cardoso - Fragmentos de uma Vida.
Ignácio enfrentou com sucesso o desafio da empreitada biográfica. No seu livro teceu a crônica de uma vida que permite compreender quem foi Ruth Cardoso e explicar a razão de ser mais ampla de sua exemplaridade. Esta se imbrica nos modos como lidou com o desafio da condição feminina no mundo contemporâneo. Soube traçar o retrato da sua biografada mesclando, na sua narrativa, os fragmentos do cotidiano (a sopa de mandioquinha, o dia a dia com Fernando Henrique e os filhos pequenos no exílio chileno, a casa e o jardim de Ibiúna) e os fatos e informações da atividade de uma pesquisadora e professora de Ciências Sociais que, pioneiramente, percebeu e escreveu sobre a mudança na dinâmica dos movimentos da sociedade. O luminoso posfácio de Manuel Castells dá conta da relevância acadêmica dos seus ensinamentos.
Ignácio garimpou, nos documentos e nas múltiplas e diversificadas entrevistas com seus próximos, facetas básicas de uma personalidade de boa e educada sociabilidade, que sabia conversar com as pessoas, mas preservava a sua intimidade. Captou a estatura humana e intelectual de Ruth, que, pela sua ação e pelo seu pensamento, teve voo próprio, independentemente do que foi a trajetória de FHC. Soube contextualizar o Brasil em que ela esteve inserida com a sensibilidade de um cronista que logrou explorar na narrativa o comum de vivências compartilhadas, proveniente da proximidade geracional. Explicou como ela redefiniu, com autonomia, discernimento e criatividade, o papel da mulher do presidente, colaborando, desse modo, na concepção de políticas sociais, distintas do assistencialismo tradicional.
Políbio dizia que o começo é mais da metade e alcança o fim. Uma das virtudes da narrativa de Ignácio é a de, como araraquarense que fez da memória vivida da sua cidade uma das fontes de inspiração da sua obra, explicar como Ruth levou dentro dela, a vida inteira, o significado do que representou para ela o seu lado Araraquara: o de quem gostava "das coisas boas da vida, mas possuía um sentimento ácido em relação a ‘grã-finagens’ e vaidades vazias".
A Araraquara de Ruth, que alimentou a sua eticidade, foi a de uma família de operosa e séria classe média, marcada pela boa e discreta presença de seu pai e impulsionada pela forte e independente personalidade de sua mãe, a professora dona Mariquita, a dos amigos e colegas de infância, de sua escolaridade inicial e do ambiente dos anos 30 e 40 de uma cidade do interior do Estado de São Paulo.
Araraquara está não só no início, mas na origem desta biografia. Foi a entrevista que Ignácio realizou em 1999 para a Vogue, Ruth Cardoso e o reencontro com a cidade desaparecida, o ponto de partida do "retrato de uma araraquarense por um araraquarense".
O tema recorrente que permeia a biografia de Ruth é, como disse, o da lida com a condição feminina no mundo contemporâneo, um desafio de abrangente espectro, pois as transformações desta condição no século 20 foram constitutivas de uma verdadeira revolução. Com efeito, a Revolução Feminina, como a Revolução Industrial, trouxe uma mudança radical, ainda que gradual, nos costumes e no funcionamento da sociedade, não precedida, no entanto, como explica Bobbio, de um evento inaugural. Essa significativa mutação do que era o tradicional propiciou uma crescente presença das mulheres no mundo das profissões, dos negócios, da política e do pensamento, com impacto redefinidor na prévia lógica social dos papéis do masculino e do feminino.
No caso de Ruth, a mutatio rerum acima apontada representou o desafio do buscar e encontrar na sua vida um equilíbrio entre os seus projetos intelectuais e a sua carreira de professora, com identidade e espaço próprios de atuação, e os cuidados mais tradicionais na lida do cotidiano, com a casa, a educação dos filhos, a atenção com netos e o convívio com um marido da projeção intelectual e política de Fernando Henrique.
A exemplaridade com que construiu esse equilíbrio teve desdobramentos que foram além da sua pessoa. Ruth extraiu de sua experiência pessoal e de pesquisadora, e da importância que atribuiu à igualdade de gênero, elementos importantes que instigaram as renovadoras propostas das políticas sociais do governo FHC. O "feminismo prático" de Ruth no trato da emancipação das mulheres contribuiu para a visão da Comunidade Solidária e da Bolsa-Escola. A ênfase no responsável papel da mulher nas famílias brasileiras traduziu-se de modo abrangente no sustentar, pelo acesso ao conhecimento, a extensão, pelo empowerment, da cidadania.
O livro de Ignácio abre-se com uma epígrafe de Sêneca: "Aquilo que terás feito de tua vida, veremos no momento em que a perderás." Ignácio narrou com sensibilidade o que Ruth fez de sua vida, com ressonância nacional e internacional. Com seu talento de escritor, descreveu o momento em que a foi perdendo, seguido pela unanimidade dos sentimentos de pesar e respeito que cercaram o seu falecimento. O livro, ao tangenciar, como seria de esperar, a atuação de FHC, aponta como na dialogada e igualitária convivência do casal Ruth foi uma companheira que engrandeceu a sua vida e a sua obra.
PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES NO GOVERNO FHC

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