Apanhadores de flores
CARLOS EDUARDO MAZZETTO SILVA
O GLOBO - 11/11/10
Desde 1500, quando se começou a inventar o Brasil, os povos que têm apego à terra são expropriados dela, tratados como gente menor. Os primeiros foram os índios.
Existe um ator social invisível no Brasil, meio parente dos indígenas pela herança do apego à terra. Seu nome sociológico e antropológico é campesinato.
Já chamado de pequeno produtor/ agricultor, trabalhador rural e mais recentemente vem sendo chamado de agricultor familiar. Em alguns casos, seus grupos recebem hoje o nome de comunidades tradicionais e, nesse caso, se referem a identidades específicas: quilombolas, seringueiros, caiçaras, pantaneiros, geraizeiros, caatingueiros, vazanteiros, beiradeiros, quebradeiras de coco... Seu destino para a sociedade moderna parece estar traçado: não existir, ser invisível... Estima-se essas comunidades tradicionais em 25 milhões de pessoas.
Recentemente, conheci as comunidades "apanhadoras de flor". Estão aqui, perto do centro de Minas Gerais (região de Diamantina, Alto Jequitinhonha), onde a história minerária fortemente se deu. São milhares de famílias que vivem na Serra do Espinhaço coletando sempre-vivas e uma infinidade de espécies de flor das campinas e carrascos, fazendo pequenas roças de subsistência, criando algum gado solto na serra e nos cerrados do sertão que a rodeiam, garimpando artesanalmente (a chamada faiscagem).
Algumas comunidades têm 300 anos de história de vida na Serra. Entretanto, contraditoriamente, sua vida está sendo impedida por uma política que tem (ou diz ter) o objetivo de preservar a natureza! Descaminhos da modernidade e de um ambientalismo que reproduz o ar tificialismo da separação homem/ natureza ou, se quisermos, sociedade/ natureza. Essa separação, instituída pela modernidade ocidental, se reproduz na concepção dos "parques sem gente".
Querem instituir as chamadas Unidades de Conservação Ambiental de proteção integral em áreas onde ainda existe a biodiversidade característica dos diversos biomas e ecossistemas.
Esquecem, ignoram ou não querem ver que essa biodiversidade remanesce ali porque há um modo de vida (sociodiversidade) que se adaptou, convive, maneja e até ritualiza esses ambientes que os preservacionistas da cidade querem proteger.
Os biólogos preservacionistas, ao sobrevoarem essas regiões e vê-las na distância das imagens de satélite, crêem que são paisagens meramente "naturais", não descem à escala da vida humana, ignoram-na. Não percebem que o que remanesce ali é uma sociobiodiversidade oriunda da coevolução social e natural.
A implantação dessas Unidades de Conservação de proteção integral (na região, a maior é o Parque Nacional das Sempre-Vivas, mas existem ainda o Parque Estadual do Rio Preto e a Estação Ecológica do Pico do Itambé) a partir desses sobrevôos (sem um estudo local aprofundado) se torna uma tragédia humana, um atentado sociocultural, uma afronta aos direitos humanos, um tiro exterminador no que resta de interação sustentável entre sociedade e natureza.
O conflito se instala, as comunidades têm que resistir, afinal esse é o seu lugar, seu território, sua vida.
Contraditoriamente, o objetivo da conservação da natureza fica ameaçado, pois aqueles que são os mais aptos e dispostos a defendê-la no seu dia a dia se transformam em vítimas e inimigos das Unidades de Conservação que os oprimem e expropriam.
Não podem mais coletar flores, não podem mais criar gado, não podem mais usar o fogo como elemento de manejo em hipótese nenhuma, não podem coletar um fruto da Serra para se alimentar (tem que deixar para os outros animais que as UCs querem preservar), não podem circular nos caminhos em que sempre circularam.
Não podem nem mais morar onde moraram por mais de século, pois seu lugar virou parque - um invasor que virou suas vidas de cabeça para baixo.
Para onde vão? Já sabemos o enredo, as periferias e favelas urbanas estão aí para nos esclarecer sobre esse repetitivo processo histórico.
São os perdedores de sempre. E, depois, governos e seus órgãos organizam seminários sobre o desenvolvimento sustentável...
Ótima matéria, parabéns! Sento-me muito identificada com o conteúdo, pois faço parte de uma dessas “comunidades invisíveis”: a comunidade do Núcleo Colonial Itatiaya, criado em 1908 e arbitrariamente incluído dentro do perímetro do Parque Nacional do Itatiaia com motivo da sua ampliação em 1982. Hoje, devido aos esforços de seus antigos e atuais moradores, o Núcleo Colonial está coberto por mata secundária de altíssima qualidade, como prova a existência de onças suçuaranas e outros predadores do topo da cadeia alimentar. Somos legítimos sucessores dos colonos e herdeiros das suas tradições de amor à natureza, ao trabalho, à arte e à ciência. Estamos ameaçados pela política de “parques sem gente” a sair deste paraíso que preservamos e cuidamos melhor que ninguém. Temos sido totalmente ignorados no nosso esforço de abrir um diálogo com o governo para discutir propostas que respeitam a lei, preservam o patrimônio sócio-cultural trazendo benefícios para o meio ambiente, e não oneram a União. E, pior ainda, esse governo que não respeita as pessoas que fazem parte de uma comunidade de mais 100 anos de existência, aprovou e pretende implementar um mirabolante plano de “revitalização” para o Núcleo Colonial que prevê a desapropriação dos imóveis a fim de serem entregues à iniciativa privada com o intuito comercial da exploração do turismo. É iminente uma mudança da política ambiental no que tange às unidades de conservação e à exclusão das comunidades humanas das áreas onde sempre viveram, proibindo-lhes o uso dos recursos naturais e enxergando seus interesses como incompatíveis com a conservação. O resgate da importância da relação homem/natureza é fundamental para garantir a preservação do meio ambiente e a sustentabilidade de nossas florestas.
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