segunda-feira, novembro 08, 2010

CARLOS ALBERTO SARDENBERG

Não é a moeda
 Carlos Alberto Sardenberg
O Estado de S. Paulo - 08/11/2010
Num dos tantos rápidos diálogos da série de comédias Mash, o capitão tenta não dizer ao general que houvera uma farra no acampamento: "Senhor, na sua ausência aconteceram algumas coisas inevitáveis." E o general: "Bom, se eram inevitáveis, vocês não tinham como evitar." A desvalorização do dólar e a consequente valorização das demais moedas em relação ao padrão americano são inevitáveis. E talvez seja um preço, amargo, a pagar pela recuperação da economia global.
Eis a lógica: para que o mundo volte a crescer de maneira sólida, é preciso que os EUA, com seus US$ 14 trilhões de produto e consumo nacional três vezes maior que a segunda potência, a China, retomem o crescimento. Isso exige que o consumidor volte a gastar e as empresas americanas voltem a investir e empregar. Isso, de sua vez, exige que os bancos ofereçam crédito barato. Logo, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA) está imprimindo dólares para comprar títulos públicos que estão em poder dos bancos; passa dinheiro para estes, na expectativa de que emprestem e façam a rodar a economia.
O subproduto disso é a desvalorização do dólar perante as demais moedas do mundo. Claro, é como bananas. Tem muita banana na praça, cai o preço. Tem muito dólar... Isso, aliás, ajuda as exportações americanas e encarece os produtos de todos que vendem para os EUA. Ou seja, ajuda também a recuperação americana, atrapalhando o resto do mundo.
Essa política pode fracassar? Pode. Basta que os consumidores e as empresas americanas, sem confiança na retomada, não se animem a tomar o crédito na quantidade necessária. O dinheiro ficaria parado nos bancos ou seria inteiramente transferido para outros países do mundo, onde há crescimento econômico e taxas de juros mais altas que as americanas. Isso já está ocorrendo, em parte. Por esse lado, pode-se dizer que a política do Fed é muito arriscada e que talvez provoque mais danos do que benefícios.
A questão é: qual a alternativa? Não tem.
O governo Obama poderia, por exemplo, aumentar seus gastos em obras e programas sociais de modo a estimular a produção e o consumo internos? Já está fazendo isso, até com êxito, mas não há como ampliar o projeto por impedimento político. O presidente acaba de perder a maioria na Câmara dos Deputados e os republicanos, vencedores, já anunciaram que pretendem reverter os programas aprovados anteriormente.
Obama poderia também promover mais uma rodada de redução de impostos - coisa que os republicanos aprovariam -, mas não pode fazer isso porque precisa do dinheiro para cobrir o déficit público gerado pelo programa de gastos já em andamento.
Assim, sobra a tal política do Fed, "easing money", fabricar dólares e espalhar na praça, esperando que pessoas e empresas tomem emprestado e gastem.
Assim, temos uma única saída, na verdade uma tentativa para a recuperação americana, com efeitos colaterais danosos. E daí?
Stanley Fisher, presidente do Banco Central de Israel, país que também recebe uma enxurrada de dólares e tem sua moeda (shekel) valorizada, comentou, em conversa recente com este colunista e os jornalistas Celso Ming (Estado) e João Luiz Rosa (Valor) em seu gabinete em Jerusalém, que há duas situações possíveis quando se olha o cenário neste momento. Na primeira, o Fed aplica sua política, a economia americana cresce, garante a recuperação mundial e... provoca um problema para as demais moedas. Na segunda, o Fed não faz nada, os EUA ficam estagnados ou em recessão e o mundo, sem problema de moedas, simplesmente não se recupera. Ora, o governo Obama e o Fed já fizeram sua escolha. O que resta fazer para os demais países?
Os governos - todos, excluindo a China, que mantém sua moeda atrelada ao dólar, portanto, desvalorizada na mesma medida - podem reclamar, como estão fazendo, inclusive o brasileiro. E vão reclamar na reunião do G-20 nesta semana, em Seul, na Coreia do Sul, cuja moeda, aliás, também está valorizada. Vão reclamar dos EUA, mas também da China, que há anos, antes mesmo dessa confusão toda, mantém sua moeda excessivamente desvalorizada.
Reparem: se a China deixasse sua moeda se valorizar, isso resolveria boa parte do problema. Pela lógica: se todas as moedas do mundo se valorizassem igualmente diante do dólar, então todas elas permaneceriam no mesmo lugar, não é mesmo? O problema ocorre quando todas se valorizam e apenas a moeda chinesa, entre as mais importantes, continua desvalorizada. Isso barateia os produtos chineses de exportação, sendo uma vantagem contra todos os demais.
Ocorre que o modelo chinês, com 30 anos de êxito, é baseado nessa exportação. Como mudar de uma hora para outra? Os dirigentes têm medo de um colapso no crescimento, o que, aliás, seria muito ruim para o mundo todo. O Brasil, por exemplo, tem sua fonte de crescimento recente nas exportações e muito especialmente na expansão das vendas para a China e países atrelados a ela.
Sim, caro leitor, cara leitora, vocês têm razão. A cada parágrafo deste artigo estamos complicando a coisa um pouco mais. Mas não se trata de espírito maligno. A situação é assim, um rolo danado.
Primeira conclusão: não vai sair nada de substancial da reunião do G-20. Segunda: se tem muita coisa inevitável nisso tudo, não quer dizer que aos governos locais só resta reclamar. Eles podem fazer muita coisa, especialmente o brasileiro, partindo deste ponto: nosso maior problema não está no jogo internacional das moedas, está aqui dentro mesmo.
Outro dia, exportadores brasileiros de manufaturas estavam dizendo que, por causa da valorização do real, estavam perdendo mercado para concorrentes mexicanos e colombianos. Ora, não faz sentido: as moedas do México e da Colômbia também se valorizaram nos últimos meses e até mais do que a brasileira.
Assim, temos um problema de moeda com a China e os EUA, mas não com os demais emergentes. Qual é a nossa desvantagem competitiva em relação a todos estes?
A taxa de juros: aqui rodando pouco acima dos 5% ao ano, em termos reais, descontada a inflação, enquanto no resto do mundo está entre zero e 1%. A carga de impostos: aqui, de 35% do PIB, contra uns 22% nos demais emergentes. A dívida pública bruta: aqui, em torno dos 60% do PIB e subindo, ante algo na casa dos 40% dos demais.
Tudo isso é coisa nossa. Mas é mais fácil botar a culpa nos outros.

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