quinta-feira, outubro 21, 2010

PASQUALE CIPRO NETO

Raciocínio torto, argumentos tortíssimos
PASQUALE CIPRO NETO
FOLHA DE SÃO PAULO - 21/10/10


Não force argumentos, não desafie a coerência, não se contradiga. O resultado pode ser um rotundo zero



OS VESTIBULARES E O ENEM estão chegando e, com eles, a prova de redação, que, para muitos, é o terror dos terrores. Para os "medrosos", o drama não é só a dificuldade de lidar com a norma culta, mas também (e sobretudo) a coisa em si, isto é, a forma, o conteúdo, as ideias.
Quase 100% das provas exigem uma dissertação, o que impõe a defesa de uma tese a respeito de determinado tema. Aí começa o drama de muita gente: como defender um ponto de vista sem conhecimento de causa? Como argumentar se muitas vezes o repertório é só de argumentos tortos, ilógicos, contraditórios?
Em minhas palestras, sempre recomendo aos candidatos que exercitem o raciocínio argumentativo a partir de fatos do dia a dia. Vou dar um exemplo prático, que ocorreu comigo anteontem. Nesse dia, estive em Salvador, a convite de uma universidade soteropolitana. Pela manhã, no aeroporto, uma cena que ilustra bem o que ocorre quando se utiliza um argumento de mão dupla, daqueles de que as pessoas se valem para justificar o procedimento X ou o seu inverso.
Aos fatos: o painel da gloriosíssima Infraero informava que o avião para Salvador estava "atrasado". Quando anunciaram o embarque, os funcionários da companhia aérea, como de costume, pediram que se fizessem duas filas (passageiros das fileiras de 1 a X de um lado e de X + 1 em diante do outro lado). Normalmente (e por motivos óbvios) os primeiros a embarcar são os passageiros das fileiras traseiras. Para minha surpresa, vi que os despachantes da empresa promoveram o embarque simultâneo das duas fileiras.
Pois bem. Meu sangue italiano me impede de ficar quieto. Quando entreguei meu cartão de embarque, perguntei à funcionária por que agiram daquela maneira. "Quando o avião está atrasado, a gente faz isso mesmo", disse-me ela, com plena convicção de estar manifestando um pensamento redondo. Pois redondo seria o zero que essa moçoila obteria se fosse fazer uma dissertação. O caro leitor certamente notou que, para justificar o abandono do procedimento padrão, a simpática funcionária usou justamente o argumento que justifica a adoção do procedimento padrão. Nota? Zero!
Outro exemplo (também real): dia desses, eu conduzia meu automóvel por determinada rua. Ao passar diante de um curso pré-vestibular (cujos alunos -e seus pais, parentes etc.- sempre causam problemas no trânsito quando acabam as aulas), quase acertei em cheio o carro de um rapazola, o qual, saindo a mil de um estacionamento e já com o celular colado à orelha, virou para a direita sem nem ao menos olhar para a esquerda, de onde eu vinha. Com o dedo (ou o pé) de algum santo, consegui frear e evitar o acidente.
Em seguida, o farol fechou e me vi ao lado do imberbe moçoilo, provavelmente aluno do referido curso. Como moro no Brasil, nunca digo nada a ninguém no trânsito, mas nem sempre me livro de ouvir. Discípulo direto de Sócrates, o mancebo disparou: "Você (eta menino bem-educado!) tem de descer mais devagar!" (eta menino inteligente!). Era impossível correr ali, nem que eu quisesse. Fiquei morrendo de vontade de dizer-lhe isto: "Meu filho, se argumentares assim na tua dissertação, estarás aqui no ano que vem!". Achei melhor deixar para lá.
Como dizia Nélson Rodrigues, o raciocínio torto (não era bem isso o que ele dizia) é osso duro de doer. Que fique claro o recado deste texto: não force argumentos, caro/a candidato/a, não desafie a coerência, não se contradiga. O resultado pode ser um rotundo zero (ou uma fragorosa derrota, em se tratando de candidatos a outra coisa...). É isso.

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