País da incerteza Miriam Leitão Começa agora o governo Cristina Kirchner. Esse é um dos vários inusitados da situação política do país vizinho. Faltando 13 meses para terminar o mandato, a presidente tem, enfim, chances de governar um país. O ex-presidente Néstor Kirchner nunca deixou de ser o governante, impunha seu estilo e vontade. Foi quem tirou a Argentina do fundo do poço. Apesar dos problemas de saúde que Néstor Kirchner teve recentemente, os cenários políticos não consideravam a hipótese do futuro imediato sem ele. Foi o que admitiu com espanto o analista do “Clarín” Eduardo Van der Kooy. Tanto na operação da carótida, quanto na angioplastia, os Kirchner não quiseram que a saúde do ex-presidente ocupasse espaço no debate político. Falar da doença atrapalharia os planos futuros do casal. Ele era um dos candidatos à eleição do ano que vem e, mais do que isso, era o dono dos rumos do governo da mulher, do partido do governo, e da linha política que inaugurou: o kirchnerismo. O futuro é uma incerteza só. A palavra em espanhol define melhor, aos nossos ouvidos tem um som mais pesado, como se fosse mistura de incerteza e drama: incertidumbre. Será Cristina capaz de superar o golpe emocional da morte daquele que foi seu marido por 35 anos? Terá forças para se impor a um Justicialismo dividido pelos últimos oito anos de comando de ferro de Néstor? Manterá o estilo de governar pelo confronto que o marido sempre manteve e que deixou sequelas nas relações dos produtores rurais, indústria, Igreja, Suprema Corte, Congresso e imprensa? Conseguirá Cristina Fernández superar a sina trágica das mulheres no poder argentino? Evita morreu, jovem e bela, antes que Juan Domingo Perón realizasse o sonho de fazê-la vice-presidente. Isabelita, vice de Perón na década de 70, assumiu quando o marido morreu. Aparvalhada, conduziu um governo fraco e corrupto e foi deposta pelos militares. Cristina assumiu o poder cercada de esperanças de que fosse enfim um governo comandado por uma mulher. Era senadora, tinha tido uma carreira política prévia. Mesmo assim se deixou anular completamente. Se em alguns momentos circularam rumores de que o casamento estava abalado, a parceria política sempre foi indissolúvel, como se os dois fossem um só. E agora? Néstor Kirchner ficará na História por ter tirado a Argentina de um momento trágico. Em poucos dias, na passagem de 2001 para 2002, o país teve três presidentes. Com o país mergulhado na pior crise da sua história, o presidente Fernando de la Rúa renunciou no meio de violentas manifestações de rua, em que os argentinos mostravam sua fúria pela perda de poder aquisitivo e a recessão no fim do regime do câmbio fixo. “Que se vayan todos!”, gritavam nas ruas os argentinos querendo se livrar de todos os políticos. Adolfo Rodríguez assumiu interinamente, decretou moratória e renunciou em seguida. Eduardo Duhalde manteve a moratória, acabou com a paridade do peso e do dólar e preparou a nação para as eleições. O país estava 18% menor do que em 1998, e tinha 60% da população abaixo da linha da pobreza quando em 2003 ocorreram as eleições. O partido fundado por Perón teve três candidatos. A União Cívica Radical, de De La Rúa, desmoralizada, estava fora do jogo. Numa reportagem que fiz sobre o país na época, o que mais me impressionou foi uma mulher, que no meio da passeata, respondeu a uma pergunta minha sobre a razão da manifestação: “Não há futuro, não há futuro”, disse, aos gritos. Nesse ambiente, Kirchner venceu e começou a organizar o país. Manteve o ministro Roberto Lavagna e começou o caminho da recuperação. O país cresceu forte: 11,7% em 2003, 9% ao ano de 2004 a 2007. Reduziu o ritmo em 2008, no ano passado teve recessão e em 2010 deve crescer mais de 7%. O problema é que neste meio tempo, o casal K, como os argentinos o chamavam até ontem, fez uma intervenção no Indec, departamento de estatísticas, jogando dúvida sobre todos os indicadores econômicos. A inflação subiu, mas o dado oficial está parado abaixo de 10%. Na verdade, os preços têm subido mais de 20% ao ano. Há projeções acima de 30%. Néstor Kirchner ocupava um espaço tão grande na política argentina que os analistas do país tinham ontem dificuldades de ver que forças vão ser decisivas no futuro. Na pequena lista de presidenciáveis está por exemplo o governador de Buenos Aires, Daniel Scioli, do Partido Justicialista, e um dos possíveis candidatos, caso Cristina não queira ou não consiga ser candidata no ano que vem. A União Cívica Radical tem duas forças, o vice-presidente, Julio Cobos, inimigo de Cristina, e Ricardo Alfonsin. O principal obstáculo de ambos é o fracasso do partido no poder. O empresário Maurício Macri organizou uma frente, a Proposta Republicana, cuja maior vitória foi a do próprio Macri para a prefeitura de Buenos Aires. A Argentina volta a ficar, como definiu Van Der Kooy, “entre a tragédia e o drama.” A oposição perde o amálgama que a unia para enfrentar um adversário forte; os peronistas perdem sua força hegemônica; a presidente perde o marido e mentor; a Argentina perde o presidente que a resgatou da crise e a jogou em inúmeros conflitos internos. O cenário político tem hoje uma enorme interrogação. Numa análise recente sobre as eleições do próximo ano, o cientista político argentino Rosendo Fraga concluiu profético: “Muita coisa pode mudar em um ano, porque nunca se deve esquecer que, em última instância, a política se constrói sobre o imprevisto.” |
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