domingo, outubro 24, 2010

JOÃO UBALDO RIBEIRO

A campanha eleitoral na ilha
João Ubaldo Ribeiro 
O Estado de S.Paulo - 24/10/10


Em Itaparica, não se pode dizer que o clima político está muito animado. O itaparicano, como sempre, permanece atento ao panorama nacional, mas os outrora inflamados debates que ocorriam no bar de Espanha deram lugar a considerações de outra ordem. O dr. Serra ficou em terceirão nos dois municípios que compõem a ilha, mas ninguém comenta muito o fato, pois, como observou Xepa, não convém tripudiar, ainda mais que tem segundo turno e nunca se sabe o que pode acontecer, tudo neste mundo é possível. De repente o homem se elege e aí vem tomar satisfações, já basta ele ter levado essa surra no primeiro turno, vamos respeitar a cabeça inchada alheia.

Xepa, que, depois de testemunhar um tatu ser fisgado por um pescador amigo seu, anda cada vez mais filosófico, aconselha que se assuma, no momento, a posição politicamente mais sensata. Ou seja, em cima do muro estou, em cima do muro fico, de cima do muro ninguém me tira, só saio na hora certa, aqui pra vocês todos. Num transe como este, o homem de filosofia ajuizada fica na sua alcova mental, de olho aberto e boca fechada, é o que já aconselhavam os antigos mais reverenciados e que se deram melhor na vida. A candidata do governo deve ganhar, porque governo é governo e esse governo faz muitas coisas bem, agora mesmo está fazendo a campanha da candidata muito bem, só falta os juízes também mandarem votar nela, mas um dia destes eles mandam. Em cima do muro e com um pé atrás, essa é a melhor posição do bom filósofo. Ainda mais, acrescentou ele, que nós somos nós e eles todos são artistas melhores que os artistas de novela, é cada artista mais retado do que o outro, nenhum de nós chega nem perto.

Sim, a opinião geral é que a campanha revelou ou consagrou notáveis artistas, a começar pelo presidente, tido por muitos como ali pau a pau com Lima Duarte, havendo até os que, a exemplo de Ioiô Beleza, acham que ele ganha e, depois da Presidência, já tem lugar garantido entre os grandes da Globo, talvez até no Fantástico. O bicho é danado mesmo, entusiasma-se Ioiô.

- Eu gosto muito quando ele vai falando e andando, falando e andando e aí para e diz -sabe?". Aí eu sei que lá vem a zorra, é cada uma de entontecer, eu chego a me encolher, parece pedrada! O negócio dele é ir dizendo, ele vai dizendo, não quer nem saber. Se for pra rir, ele ri e, se for pra chorar, ele chora, com ele não tem perdão, o bicho é bom mesmo, é cada uma de entontecer!

Nunca consegui que Ioiô explicasse direito o que é essa "cada uma de entontecer", mas não se pode discutir com os fãs. E, se o presidente é talvez o mais admirado, não foram poucos os comentários elogiosos ao desempenho dos candidatos, notadamente durante o que Jacob Branco, como sempre orador inspirado e detentor de temido vocabulário, denominou, de "vertiginoso paroxismo de volúpia ecumênica", ou seja, a disputa entre os candidatos relacionada com a religião.

- Foi um espetáculo muito bonito, muito tocante - disse Jacob. - Eles são formidáveis, vamos reconhecer. Vituperam as más línguas, mas a verdade é que eles deram tudo de si, foi um magno esforço de reportagem. Você via pelos olhinhos deles esperando alguém perguntar, para eles responderem "creio, creio", parecendo até um canto de passarinho - creio-creio! O eleitor, se quiser, pode botar numa balança: fé de um, fé de outro, fé de um, fé de outro. E tenho certeza de que eles estão dispostos a se batizar no que aparecer e a comungar onde quiserem que eles comunguem. Eu soube que, se for para ganhar de vez o voto católico, d. Dilma já disse que vai de irmã de caridade numa boa e, se for para ganhar o voto judaico, dr. Serra manda aparar o principal. Não tem problema, porque depois ela vira bispa evangélica e ele se converte de volta ao catolicismo e vai ajudar a celebrar uma missa em Araraquara, com um microfone de lapela para pegar o repique dele às falas do padre, eles são muito bons, é difícil escolher o melhor. Eu vou sugerir a um pessoal que eu conheço que convide os dois para uma festa num bom candomblé, tenho certeza de que os dois iam dar o santo na hora em que o atabaque batesse e dr. Serra é feito de Xangô desde menino e d. Dilma é iaô de duas grandes casas. É uma beleza, eles vão acabar acreditando nas mesmas coisas, fé de um, fé de outro, é isso mesmo.

Ainda em relação ao denodo, à bravura e aos padecimentos não somente cívicos dos candidatos, tem sido muito comentado como eles são obrigados a viajar, em perigos e guerras esforçados, visitando terras estranhas, dormindo em camas estranhas e comendo comidas estranhas, que nunca podem rejeitar, para não ofender quem as oferece. A descrição de algumas dessas comidas, feita eloquentemente por Luís Olegarino, que já foi garçom do Grande Hotel e conhece a porcariada que a alta roda come, até mesmo caramujos, provocou ampla manifestação de solidariedade, embora Ari de Almiro, em bem encaixado aparte, tenha oferecido um adendo instigante.

- Está certo que comer qualquer coisa pode ser chato para eles - disse Ari. - Mas o que a gente nunca vai ver é eles sem comer nada.

Finalmente, cabe uma palavrinha sobre as perspectivas do segundo turno. É difícil fazer uma previsão do comportamento eleitoral, principalmente depois que o pensamento filosófico de Xepa foi exposto e acatado e ninguém conta em quem pretende votar. Zecamunista chegou a ser ansiosamente aguardado no bar, depois de sua expedição de pesquisa de voto por todos os pontos remotos da ilha. Mas, para decepção de todos, voltou sem resultados.

- Não deu certo - explicou ele. - Tradição política é tradição política, todo mundo quer vender o voto da pesquisa. 

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