domingo, outubro 03, 2010

FERNANDA TORRES

Cronos
FERNANDA TORRES
folha de são paulo - 03/10/10


Rezo para que a antropofagia estéril das mágoas acumuladas não seja a grande vencedora em 2010

SE DILMA se eleger neste domingo, eu terei ao menos um grande alívio: o fim da preocupação de escrever essa coluna semanal.
Quando me foi feito o convite, a possibilidade de uma leiga como eu analisar a corrida eleitoral pelo seu lado teatral, o da política como fenômeno de comunicação, me seduziu a aceitar a proposta.
No meio do caminho, a disputa antes velada entre o poder e a imprensa se acirrou violentamente. Em um pronunciamento privado, José Dirceu nomeou seus principais desafetos: o Grupo Folha e as Organizações Globo.
Apesar de não ter contrato fixo com a TV Globo, eu, assim como centenas de atores que conheço, trabalho com frequência na maior produtora de conteúdo dramatúrgico do país. Não satisfeita, aceito participar do caderno Eleições 2010 da Folha de S.Paulo. Péssimos antecedentes.
Sempre que acontece uma polarização extrema, exige-se dos que estão envolvidos um posicionamento claro, partidário. Ou bem você ama a liberdade de expressão ou o povo. Ou você é Dilma, ou Serra. PT ou PSDB.
Lula sugeriu que os jornais explicitassem seu voto, em vez de mascararem o partido político pelo qual torcem com denúncias aparentemente isentas.
Ao longo dos últimos oito anos, aconteceram excessos de todos os lados, capas de revistas com pontapés na bunda do presidente e pronunciamentos de rancor público por parte das autoridades.
O economista Enéas de Souza, em um texto na rede, declarou que a imprensa se transformou na voz agonizante das oligarquias, em pânico diante da ameaça da verdadeira democracia opinativa das novas mídias de comunicação via internet.
O profético radicalismo apocalíptico do dilúvio tecnológico de Enéas, que virá abalar a atual concentração de poder e reinventar um mundo melhor, me incomoda tanto quanto os exageros difamatórios e o protecionismo de mercado das grandes corporações de comunicação.
Mais uma vez, reafirmo minha frágil posição de ovo sobre um muro estreito. Detesto extremismos e me preocupa o reflexo deste ódio mútuo nos setores menores da sociedade.
Em uma reunião entre a classe teatral e a secretária de Cultura do Rio, o diretor de um grupo teatral tomou o microfone para dizer que a dificuldade de sobrevivência, a falta de recursos e conexão com as plateias, ou seja, toda a crise do setor seria culpa dos atores, nas palavras dele, GLOBAIS, que além de fazer um teatro comercial, visam o lucro, viciando plateias com produções digestivas e destruindo a possibilidade de sua trupe, essa sim, séria, pura e competente, de existir como criadora.
Me deu vontade de mandá-lo assistir Marco Nanini em Pterodátilos para saber que ofensa há na existência de um trabalho extraordinário como aquele, que recebeu um redondo não de todos os possíveis patrocinadores, e que luta para existir tanto quanto qualquer mortal.
Rezo para que a antropofagia estéril das mágoas acumuladas não seja a grande vencedora em 2010.

FERNANDA TORRES é atriz

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