quarta-feira, outubro 20, 2010

ALOÍSIO DE TOLEDO CÉSAR

Em dúvidas o calote
Aloísio de Toledo César 
O Estado de S.Paulo - 20/10/10


Uma esperança se acendeu no coração de milhares de brasileiros credores de precatórios judiciais com a divulgação do parecer do procurador-geral da República, Geraldo Murgel, pela inconstitucionalidade da chamada Emenda do Calote, aquela que prorrogou por mais 15 anos o prazo para os pagamentos determinados pelo Judiciário, estabelecendo complicadas regras.

Anteriormente, duas emendas constitucionais já haviam violado os direitos dos credores, ao ampliarem, primeiro, para oito anos e, depois, para mais dez anos o prazo para esses pagamentos. Se persistir a Emenda do Calote, o atraso nos pagamentos em muitos casos poderá levar a até 33 anos de espera.

Entre os precatórios no Estado de São Paulo, há alguns que representam verdadeiro estelionato, porque resultaram de valores estabelecidos em perícias judiciais altamente suspeitas. É o caso, por exemplo, de certas demandas envolvendo áreas localizadas na Serra do Mar. Algumas, mas não todas.

A existência dessas anomalias foi propagada propositadamente pelos governadores e prefeitos. O erro está em que os credores de precatórios são em grande maioria pessoas que litigaram durante décadas para reconhecimento de seus créditos alimentares (salários, pensões em atraso) ou que foram desapropriadas sem nada receber em pagamento (praticamente um confisco, que a Constituição proíbe).

Ainda no Estado de São Paulo, é importante destacar o comportamento do governador eleito, Geraldo Alckmin, o qual, ao assumir esse mesmo cargo em decorrência da morte de Mário Covas, imediatamente começou a pagar os precatórios, cuja fila estava parada havia seis anos. O ex-governador Mário Covas, que conquistou tanta estima e admiração, tinha em relação aos precatórios judiciais uma visão bastante pessoal. Ele se mostrava convencido de que os precatórios envolviam bandalheiras e por isso se mostrou relutante em pagá-los, assumindo a atitude de quitar somente as dívidas que contraía.

Com isso, somando-se 6% de juros moratórios, mais 12% de juros compensatórios ao ano, os valores dos precatórios devidos pelo Estado de São Paulo naquele período subiram a limites assustadores. É nesse ponto que a conduta de Geraldo Alckmin se tornou marcante, porque resolveu enfrentar o problema, dando início aos pagamentos pela ordem cronológica.

Seu sucessor, José Serra, teve o mesmo comportamento e com isso muitos precatórios que haviam sido parcelados em dez anos se encontram parcialmente quitados, restando, variando de caso para caso, parcelas pendentes. Mesmo esses precatórios que haviam sido parcelados estão agora sob a ameaça de novo parcelamento, de até 15 anos.

A Prefeitura de São Paulo também vinha quitando com regularidade os precatórios, porém nos últimos meses, alterando essa linha de conduta, começou a criar incidentes processuais, com o claro propósito de protelar os pagamentos. O prefeito parece ter aprendido a velha tática dos advogados de ganhar tempo empurrando os processos com a barriga.

Não pagar os precatórios é bastante confortável para o administrador público, porque o dinheiro que sobeja pode ser aplicado em obras, que atendem a maior número de pessoas e apresentam resposta eleitoral mais vantajosa. Essa visão equivocada e egoísta torna inútil o trabalho do Judiciário e estabelece enorme instabilidade nas relações jurídicas.

Grande parte dos credores culpa os juízes pela demora nos pagamentos, sem se dar conta de que a decisão judicial é descumprida pelo administrador público, não pelo Judiciário.

Na votação da Emenda do Calote o presidente Lula teve participação, ao determinar que suas lideranças no Congresso Nacional se manifestassem a favor. Ninguém ficou vermelho na hora da votação e muitos até fingiram que estavam fazendo um favor ao País.

O parecer do procurador-geral da República, objeto de editoriais de vários jornais, inclusive do Estado, concluiu pela inconstitucionalidade da lei, por não ter sido obedecido na sua tramitação o devido processo legal legislativo, mas entendeu também ter havido inconstitucionalidade parcial do artigo 97 do Ato das Disposições Transitórias, introduzido pela emenda.

Se for esse também o entendimento do Supremo Tribunal Federal ao julgar a Adin, a declaração de inconstitucionalidade obrigará os governantes interessados a novo esforço perante a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, agora com nova composição. Daí a esperança dos credores logrados.

A inconstitucionalidade apontada pelo procurador-geral, e que já havia sido suscitada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), consiste em não ter sido cumprida pelo Senado a compulsória realização da votação em dois turnos, conforme prevê o artigo 60, parágrafo 2.º, da Constituição federal. O Regimento Interno do Senado, no seu artigo 262, também exige que entre uma votação e outra ocorra um interstício de cinco dias úteis, que não foi cumprido. Ou seja, está de plena conformidade com o que dispõe a Constituição.

No caso, as duas votações no Senado ocorreram no mesmo dia, com apenas horas entre uma e outra - isso porque havia pressa de atender aos anseios de governantes pouco escrupulosos. Tal desvio no curso da votação representa vício insuperável, bem apontado na ação direta de inconstitucionalidade proposta pela OAB. Como houve violação não apenas do Regimento Interno do Senado, mas também da Constituição federal no artigo que exige a votação em dois turnos, dificilmente serão encontrados argumentos para justificar tal inconstitucionalidade.

Enfim, há mesmo esperança de que a Emenda do Calote, pelo desrespeito consagrado aos credores, tenha o destino que merece: os arquivos.

DESEMBARGADOR APOSENTADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO.

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