quarta-feira, setembro 01, 2010

MÍRIAM LEITÃO

A magia do 'JB' 
Miriam Leitão 

O Globo - 01/09/2010

Contava o “Jornal do Brasil” dois anos, em 1893, Ruy Barbosa era o editor-chefe, quando ele foi fechado pelo governo Floriano Peixoto. Um ano e 45 dias depois, voltou a circular. Foi isso que marcou a personalidade do velho “JB” ou foi o jornal ser empastelado no Estado Novo, censurado na ditadura militar? Ou terá sido a teimosia em ousar sempre, como na reforma de Alberto Dines?

O que é determinante nessa história de 119 anos? A teimosia inteligente. Foi a que fez Rodolfo Dantas, Joaquim Nabuco e Barão de Rio Branco se juntarem naquele jornal meio monarquista em plena República. E Ruy Barbosa defender o regime civil no governo de um marechal.

No princípio foi assim.

Depois também. Por isso, enfureceu os governos ditatoriais.

“Uma nação inteiramente aturdida”, começou o editorial do “JB”, recebeu a comunicação de que os direitos individuais foram “substituídos pelo império do arbítrio.” E continuou: “De agora em diante, subverte-se um princípio universal, que é a presunção de que todos são inocentes até prova em contrário.

Desde ontem no reinado das trevas, a presunção é outra: somos todos previamente culpados e nos cabe como castigo provar a inocência.” Esse texto, assim vigoroso, foi escrito no dia 13 de dezembro de 1968, o dia do AI-5. A censura vetou, ele não foi publicado.

No seu lugar, a alegoria de uma foto de um menino lutando com um gigante.

A luta desigual do arbítrio. Ela se travou em capas históricas como aquela, inesquecível, do golpe no Chile e morte de Salvador Allende. Alguém pode imaginar um jornal sem manchete? A proibição de dar aquele assunto em manchete e de pôr fotos produziu uma das mais belas páginas da imprensa brasileira: apenas texto, uma única notícia, sem título, sem foto, apenas aquele espanto se espalhando por toda a primeira página.

Nessa despedida do “Jornal do Brasil”, o que os jornalistas que passaram por lá sentem é que povoavam uma redação mágica. Cada um sabe a preciosidade que viu: a sala de pedir conselhos e mostrar os textos a Zuenir Ventura; o Castelinho entregando sua coluna, num dia que veio ao Rio; a exuberância do Zózimo.

Estava na hora de fechar e havia um buraco na coluna do Zózimo. Eu já tinha feito todas as notas que sabia, ele tinha feito outras. E lá estava o buraco. O tempo passando.

Faltava uma nota. Nenhuma notícia. Olhei aflita. Zózimo calmo. Vai para a máquina de escrever e inicia com o seu bordão. “Não será surpresa para esta coluna.” Parou. O que será que ele sabia? E ele, maroto e charmoso, completa: “Aliás, nada mais será surpresa para esta coluna.” Assim saiu, intrigante, sua nota inventada. Meninos, eu vi.

Cada um passou por lá num tempo dado. A maioria se lembra de fatos, brincadeiras, amizades, folclores do dia a dia naquela vasta redação da Avenida Brasil, 500. Joaquim Ferreira dos Santos lembrou deliciosos detalhes, como o ascensorista que anunciava no andar da redação: “Parque de Diversões.” Eu tive privilégios. Como o de ter aulas com os professores Dionísio Carneiro e Rogério Werneck, chamados por Flávio Pinheiro e Marcos Sá Corrêa para me ilustrar em questões econômicas e me preparar para ser editora.

O jornalismo não morre, jornais sim. Sigo a colega Ruth de Aquino e não vou falar de quem o fez morrer, nem fingir acreditar que é só uma migração para o online. Todos sabemos o que houve, do lento processo que foi definhando o jornal.

Já o jornalismo está neste exato momento entrando cada vez mais fundo em terreno desconhecido e excitante.

Os jornais adotaram novos formatos e convivem com os antigos. A cada dia é preciso inventar uma nova rota até o mesmo destino, o leitor. Ele será capturado pelos mesmos ingredientes: a inteligência, o espírito crítico, a informação, a dúvida.

As notícias do futuro são intensas. Michael France e Justin Dini escreveram no Brunswick que o velho conceito de circulação está morto, perdeu o significado porque até a métrica mudou.

Como calcular o prestígio dos produtores de conteúdo nos novos tempos? A CNN criou novas medidas como a de “Integradores de TV/WEB Multiplataforma” ou “Usuários de Web Móvel.” Novos tempos, medidas ainda sendo criadas. Mesmo assim, a empresa dona do “Guardian” teve prejuízo no último ano fiscal, apesar de ter 35 milhões de visitantes únicos no mundo e 13 milhões nacionalmente.

O “Times”, de Londres, perdeu quase 90% dos leitores online quando passou a cobrar pelo conteúdo. Na crise, o que se viu foi um aumento da demanda por informação.

O jornalismo foi mais e não menos exigido.

Há várias questões perturbadoras no novo mundo multiplataforma. Ninguém mais é só papel, TV, rádio, internet. É tudo junto, mais as mídias sociais, e a espera da próxima novidade.

Num mundo assim de velocidade alucinante, folheio as velhas e belas primeiras páginas do “JB” no livro que desde ontem tirei da estante e não paro de admirar. Já estamos no futuro, mas o passado do velho diário carioca encanta. A inteligência passou por lá: Clarice, Callado, Drummond, Manuel Bandeira. Tantos outros, antes e depois. A inteligência é pura magia.

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