quarta-feira, agosto 11, 2010

RUY CASTRO

Cacarejos a 10 mil pés 

Ruy Castro

FOLHA DE SÃO PAULO - 11/08/10


O pior aconteceu. Leio que a TAM vai permitir o uso do celular durante os voos domésticos. Isso significa que, em vez de aproveitar o voo para cochilar e recuperar o sono atrasado ou pôr em dia minha leitura dos clássicos brasileiros ou da revista de bordo, terei de aturar os problemas pessoais do passageiro ao meu lado. 
E, mesmo que não tivesse nada a fazer e me limitasse a olhar para o teto do avião, por que devo ser obrigado a ouvir que o filhinho do passageiro está com diarreia e que ele recomenda à esposa que use a pomada tal contra assaduras? Ou que considera seu sócio uma besta e está dedicando metade do voo a espinafrá-lo porque o fulano não comprou o lote de bombinhas contra asma que o fabricante ofereceu com desconto? Ou que, definitivamente, ele não quer almoçar com a sogra neste domingo? 
O celular está fazendo com que todo mundo saiba da vida de todo mundo. As pessoas não se tocam de que a exposição não solicitada de sua intimidade pode ser uma agressão aos ouvidos dos outros. 
Outro dia, num trem de Sevilha a Córdoba, na Espanha, o sistema de som pediu que as pessoas abaixassem o volume ou emudecessem seus celulares, ‘em consideração aos outros passageiros’. Ou seja, queria evitar que o simples toque do telefone perturbasse o sossego geral. Aqui, uma empresa de aviação, não contente em infernizar a vida dos usuários com comerciais de televisão durante o voo, institucionaliza a cacofonia de celulares tocando a 10 mil pés de altura. 
Como sei que sou voto vencido e que a maioria dos passageiros aprovará a liberação do celular nos voos – as pessoas não conseguem parar de cacarejar umas com as outras, não sei de onde tiram tanto assunto –, só me resta seguir a sugestão de uma amiga: comprar um iPod, cravá-lo nos tímpanos e fazer de conta que o mundo exterior não existe

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