quinta-feira, agosto 19, 2010

PASQUALE CIPRO NETO


O haver de Vinicius de Moraes

PASQUALE CIPRO NETO
FOLHA DE SÃO PAULO - 19/08/10


Dizer o quê, caro Poeta? Que são sentimentos nobres? Que traduziste o que vai por certas almas?

MARCUS VINICIUS da Cruz de Mello Moraes morreu em julho de 1980. Passados 30 anos da morte do Poetinha, que também era diplomata, o presidente Lula sancionou um projeto de lei que promoveu a embaixador o grande Vinicius.
Graduado em letras e em direito, em 1936 Vinicius entrou para o serviço público, como representante do Ministério da Educação junto à Censura Cinematográfica. Pois até como censor Vinicius foi genial: demitiram-no por absoluta incompetência e inatividade (o Poetinha não censurou absolutamente nada).
Exonerado sumariamente (em 1969) do Itamaraty, onde entrou em 1946, por concurso público, Vinicius foi um dos tantos brasileiros que o golpe de 64 violentou. Na sua antológica letra de "Samba da Bênção" (a melodia é de outro gênio, Baden Powell), Vinicius se autodefinia como "poeta e diplomata". Após a exoneração, ele mesmo alterou a letra ("poeta e ex-diplomata"). Vinicius enfatizava o "ex-diplomata" quando cantava o samba.
Ao sancionar o projeto que promove Vinicius a embaixador, o presidente Lula, que, em 1979, levou o escritor ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo para uma sessão de leitura de poemas, paga um pouco do haver a que esse grande brasileiro tinha direito.
Esse "haver" que acabo de empregar tem aí o sentido de "crédito". Com esse sentido, o termo (comum na linguagem comercial) é mais usado no plural ("os haveres"), mas usei no singular de propósito, para fazer referência a um dos antológicos poemas de Vinicius, "O Haver". Sempre digo que os poetas são seres enviados por Deus para traduzirem a alma humana -às vezes, a alma de poucos humanos. Pois é assim que vejo o memorável "O Haver", do qual destaco estas três estrofes:
"Resta essa vontade de chorar diante da beleza / Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido / Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa / Piedade de sua inútil poesia e de sua força inútil. / Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado / De pequenos absurdos, essa tola capacidade / De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil / E essa coragem de comprometer-se sem necessidade. / Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza / De quem sabe que tudo já foi como será e virá a ser / E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa / Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje".
Choro diante da beleza, cólera cega em face da injustiça, desejo ridículo de ser útil, coragem de comprometer-se sem necessidade... Dizer o quê, caro Poeta? Que são sentimentos nobres, nobilíssimos? Que foste capaz de traduzir fidelissimamente o que vai por certas almas? Que sofrias uma dor indizível, inefável -a dor ser homem-, mas que, como Poeta, conseguias dizê-la?
Em outro de seus grandes poemas ("Pátria Minha" -leia-o todo, caro leitor!), disseste isto: "Mais do que a mais garrida a minha pátria tem / Uma quentura, um querer bem, um bem / Um libertas quae sera tamem / Que um dia traduzi num exame escrito: / "Liberta que serás também" / E repito!" Que genial foste, Poeta, ao dizeres (e ainda dirias, se vivo estivesses) "E repito!".
Nossa pátria, Poeta, um dia será mesmo liberta. E um pouco dessa libertação passa também pelo "pagamento" da dívida que ela tinha contigo, pagamento que de certa forma representa a assunção e o explicitamento dos crimes dela no passado -em vez do apagamento deles. Sem essa purgação, Poeta, o haver não tem fim. Teríamos de escrever muitos e muitos versos que começassem por "Resta...". A bênção, grande e caro Vinicius. É isso.

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