segunda-feira, agosto 16, 2010

GUILHERME FIUZA

A carta que Dilma não escreveu ao Brasil
GUILHERME FIUZA
REVISTA ÉPOCA


Lula não tem culpa do poder político sobre-humano que adquiriu. A culpa é do Brasil. Na virada do milênio, Luiz Inácio da Silva era um problema para o PT. Derrotado em três eleições presidenciais, prisioneiro de um discurso anacrônico contra a política econômica que fundara o real, Lula se tornara um candidato de plantão, quase folclórico. Uma guinada histórica o transformou num Midas eleitoral, capaz de reeditar, com a invenção de Dilma Rousseff, o famigerado plano Celso Pitta - que parecia uma lição devidamente assimilada.

Boa parte do PT não queria Lula candidato à Presidência pela quarta vez, em 2002. Emergiam novas forças no partido, como Cristovam Buarque, que governara o Distrito Federal. Um passo adiante dos slogans genéricos contra o capitalismo ocidental, Cristovam rompera com o modelo do Estado paternal. Foi a primeira voz da esquerda a proclamar que a estabilidade monetária era boa para o povo. Governou com responsabilidade fiscal, resistindo ao bombardeio sindicalista e fisiológico de seus companheiros - que queriam, como sempre, o poder como seio materno.

Cristovam executara com sucesso o inovador programa Bolsa Escola. Apoiara o governo federal - ao qual era oposição - na luta contra a inflação e o descontrole das contas públicas. O PT tinha nele um governante moderno, potencial candidato à Presidência em 2002. Mas Lula, apesar de ultrapassado, ainda era uma lenda no partido. E conseguiu a candidatura após um arrastão comandado pelo deputado José Dirceu.

Esse Lula fraco e desgastado entrou na corrida presidencial com uma novidade. Por sensibilidade do próprio José Dirceu, a campanha dessa vez abandonaria o sectarismo estratosférico. O Brasil ia conhecer um PT mais pragmático, disposto a conversar com todos, e não apenas a rugir seus ideais imaculados - que seriam para sempre perfeitos, desde que não saíssem das assembleias partidárias e reuniões acadêmicas.

Por algum tempo, assistiu-se a um Lula híbrido, que seguia a moderação proposta por Dirceu, mas ainda vocalizava os instintos incendiários do partido: moratórias, xenofobia, ataques ao Banco Central e às metas de inflação, invasão de propriedades produtivas, intervenção na imprensa burguesa e todo aquele guevarismo de grêmio estudantil que o Brasil não queria. Lula foi então salvo por Pedro Malan.



Assistindo ao discurso totalflex do candidato da oposição - que trazia insegurança geral e uma recaída da inflação -, o ministro da Fazenda de Fernando Henrique Cardoso indagou publicamente qual dos dois era o Lula verdadeiro. Daí surgiu o documento - articulado por Dirceu e por Antônio Palocci - que elegeu o candidato do PT: a Carta ao Povo Brasileiro, na qual Lula se comprometia com princípios como a responsabilidade fiscal, o cumprimento dos contratos e as bases da estabilidade monetária. Uma transição saudável no Planalto.

O Brasil deveria estar se preparando agora para mais uma transição saudável, se o sobrenatural não tivesse entrado em cena. Lula era um presidente normal até estourar o mensalão, o maior escândalo de corrupção da história da República. Pela primeira vez, o grupo político de um presidente criava um duto sistemático entre os cofres do Estado e seu partido. O enredo foi descoberto, seus protagonistas denunciados, e o país passou a mão na cabeça de Lula - não apenas preservando-o, mas passando a conferir-lhe taxas históricas de popularidade. Acima do bem e do mal, Lula virou mito.

Um mito com um cheque em branco na mão. Nesse cheque, escreveu o nome de Dilma Rousseff. A menos de dois meses da eleição, o Brasil ainda não averiguou se o cheque tem fundos. A maioria do eleitorado está dizendo que vai descontá-lo na boca do caixa. Se der dor de cabeça, azar. Será tarde demais para pedir a Dilma - a mãe ou a madrasta - que escreva uma bela Carta ao Povo Brasileiro.

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