sábado, julho 03, 2010

JASON DEPARLE

Um mundo em movimento crescente

Jason Deparle, The New York Times 

O Estado de S.Paulo - 03/07/10


Talvez não haja uma força na vida tão onipresente, e tão subestimada, do que a migração, que está reordenando o globo


A arenga de Gordon Brown sobre uma eleitora "intolerante" acelerou sua saída do cargo de primeiro-ministro britânico. O que o tirou do sério? A queixa que ela fez sobre imigrantes, Quando um terremoto abalou o Haiti, os dominicanos enviaram soldados e os americanos enviaram navios - para desencorajar imigrantes potenciais. O congressista que gritou "Você mente!" ao presidente Barack Obama estava transtornado com a questão dos imigrantes.
Talvez não haja força na vida moderna tão onipresente e contudo subestimada que a migração global, esse veículo de destruição criativa que está reordenando cada vez mais o mundo. Subestimada? Um cético poderia perfeitamente questionar essa afirmação, considerando a frequência com que o tópico ganha as notícias e que as notícias provocam dissensões. Afinal, a campanha do Arizona contra imigrantes ilegais, codificada em lei em abril, desencadeou debates acalorados de Melbourne a Madri. Mas a migração também molda a paisagem por baixo de eventos aparentemente não relacionados às manchetes. É uma história por trás da história, uma maré complicadora, em questões tão distintas como as disputas por bônus escolares e os esforços para isolar o Irã.
Mesmo pessoas que ganham a vida estudando a migração têm dificuldade de apreender todos seus efeitos. "Politicamente, socialmente, economicamente e culturalmente, a migração aflora por toda parte", disse James F. Hollifield, cientista político da Universidade Metodista do Sul. "Com frequência não a reconhecemos." Um âmbito em que a migração causa efeitos importantes ainda que em grande parte subestimados é o do financiamento escolar.
Cientistas políticos descobriram que eleitores brancos são mais propensos a se opor aos planos de gastos quando percebem que os principais beneficiários serão filhos de imigrantes (em especial, de imigrantes ilegais). O resultado, é claro, afeta todas as crianças, imigrantes ou de décima geração.
"Quando se tem uma maior diversidade, enfraquece-se o apoio ao bem comum", disse Dowell Myers, um demógrafo da Universidade do Sul da Califórnia. Myers estudou a Proposição 55, uma iniciativa eleitoral de 2004 na Califórnia que tentava obter US$ 12,3 bilhões em vendas de bônus para aliviar a superlotação e modernizar escolas.
Publicamente, a maioria dos opositores enquadrou suas preocupações em termos econômicos, dizendo que o governo desperdiçava dinheiro e assumia dívidas insustentáveis. Ainda assim, o ódio contra a imigração ilegal foi, como um oponente colocou, o "elefante na sala de visitas". A superlotação escolar, ele escreveu numa carta a The Riverside Press Enterprise, "é causada exclusivamente pela estúpida política de fronteiras abertas dos EUA". Myers descobriu que, descontando todas as outras coisas (como opiniões políticas contrárias), os eleitores que viam a imigração como um ônus foram aproximadamente 9 pontos porcentuais mais propensos a se opor à medida que os que consideraram a imigração um benefício. "Esse é um grande efeito - foi quase suficiente para derrubá-la", disse ele. A medida foi aprovada por meros 50% dos votos.
Terceira onda. Os teóricos às vezes chamam o movimento de pessoas de a terceira onda da globalização, após o movimento de bens (o comércio) e o movimento de dinheiro (as finanças) que começaram no século anterior. Mas comércio e finanças seguem normas globais e são regidos por instituições globais: a Organização Mundial de Comércio, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional. Não há nenhum grupo paralelo com "imigração" no nome. A forma mais pessoal e perigosa de movimento é a mais desregulada. Os Estados fazem (e com frequência ignoram) suas regras, decidindo quem entra, quanto tempo fica e de que direitos desfruta.
Apesar de o comércio e as finanças globais serem disruptivos - alguns diriam que tanto quanto a imigração - eles são disruptivos de maneiras menos visíveis. Uma saia fabricada no México pode custar o emprego de um trabalhador americano. Um trabalhador do México pode mudar para a casa ao lado, mandar seus filhos à escola pública e é preciso falar com ele em castelhano.
Uma razão para a imigração parecer tão potente é que ela surgiu inesperadamente. Ainda nos anos 70, a imigração parecia tão pouco importante que o Departamento do Censo dos EUA decidiu parar de perguntar às pessoas onde seus pais tinham nascido. Agora, um quarto de todos os moradores dos EUA com menos de 18 anos são imigrantes ou filhos de imigrantes.
A ONU estima que existem 214 milhões de migrantes em todo o mundo, um aumento de 37% em duas décadas.
Suas fileiras cresceram 41% na Europa e 80% na América do Norte. "Há mais mobilidade neste momento do que em qualquer outra época da história mundial", disse Gary P. Freeman, um cientista político da Universidade do Texas.
Os mais famosos países de origem de migrantes na Europa - Irlanda, Itália, Grécia, Espanha - de repente se tornaram destinos de migrantes. A Irlanda elegeu seu primeiro prefeito negro em 2007, um homem nascido na Nigéria.
Como herdeiros de um passado imigrante, os americanos podem levar vantagem numa era de migrantes. Por mais contenciosa que a questão seja aqui, a capacidade dos americanos de absorver imigrantes continua causando inveja em muitos europeus (incluindo os que não se inclinam a invejar os americanos). Mas os desafios de hoje diferem dos daquele passado (mitificado). Pelo menos cinco diferenças separam essas eras e ampliam os efeitos da migração.
A primeira é o alcance global da migração. Os movimentos do século 19 eram mais transatlânticos. Agora, nepaleses suprem fábricas sul-coreanas e mongóis fazem trabalhos desgastantes em Praga. As economias do Golfo Pérsico entrariam em colapso sem os exércitos de trabalhadores de fora. Mesmo nos EUA, os imigrantes estão espalhados por dezenas de "novas portas de entrada" não acostumadas a eles, de Orlando a Salt Lake City.
Um segundo traço diferenciador é o dinheiro envolvido, que não só sustenta as famílias deixadas para trás como sustenta economias nacionais. Os migrantes enviaram para casa US$ 317 bilhões no ano passado - três vezes a ajuda estrangeira mundial total. Em pelo menos sete países, as remessas de fora representam mais de 25% de seu Produto Interno Bruto.
Um terceiro fator que aumenta o impacto da migração é o aumento relativo do contingente feminino: quase metade dos migrantes mundiais hoje são mulheres, e muitas deixaram seus filhos para trás. Seu surgimento como arrimos de família está alterando a dinâmica familiar em todo o mundo em desenvolvimento. A migração fortalece algumas, mas coloca outras em risco, e o tráfico sexual é hoje um problema mundial.
A tecnologia introduz uma quarta diferença com o passado: as massas acotoveladas chegaram à Ilha de Ellis sem celulares ou webcams. Agora, uma governanta em Manhattan pode falar com seu filho em Zacatecas, votar nas eleições mexicanas e assistir programas de TV mexicanos.
O "transnacionalismo" é um conforto, mas também um problema para os que acham que ele impede a integração. Numa era de jihad global, pode ser também uma ameaça à segurança. O imigrante paquistanês que reconheceu sua culpa em uma tentativa de atentado a bomba em Times Square disse que as lições jihadistas chegaram a ele do Iêmen, via internet.
Ao menos um outro traço amplia o impacto da migração moderna: a expectativa de que os governos a controlarão. Nos EUA, durante boa parte do século 19, não houve nenhuma barreira legal à entrada. Agora, espera-se que governos ocidentais mantenham o turismo e comércio fluindo e respeitem direitos étnicos enquanto fecham fronteiras. Seus fracassos - flagrantes, ainda que talvez inevitáveis - enfraquecem a fé mais geral na competência federal.
"Isso basicamente diz às pessoas que o governo não consegue fazer seu serviço", disse Demetri Papadementriou, um cofundador do Instituto de Política de Migração, um organização de pesquisa em Washington. "Ela cria a retórica anti-governo que vemos, e a raiva que as pessoas estão sentindo." Mas países ricos, em fase de envelhecimento, precisam de trabalhadores. Pessoas em países pobres precisam de empregos. E o aumento da desigualdade global implica que os migrantes têm mais do que nunca a ganhar procurando trabalho no exterior. 
TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

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