domingo, julho 11, 2010

ELIO GASPARI

 A"conjunção carnal" do delegado de SC
ELIO GASPARI
FOLHA DE SÃO PAULO - 11/07/10


Reapareceu a teoria segundo a qual não existe estupro, existem mulheres mal comportadas



NO DIA 14 DE MAIO, uma garota de 13 anos encontrou-se com um amigo num shopping de Florianópolis e foi ao seu apartamento, onde vive com a mãe e o padrasto. Ele tem 14 anos e é filho de Sérgio Sirotsky, diretor do Grupo RBS de comunicação em Santa Catarina. A empresa, pertencente à sua família, controla 46 emissoras de televisão e rádio e oito jornais diários no Sul do país.
O que aconteceu no apartamento do garoto não se sabe com precisão, pois o inquérito policial e o processo correm em segredo de Justiça. Durante a investigação, quem devia preservar o sigilo permitiu que ele vazasse.
A jovem contou em seu depoimento que foi estuprada por um ou dois rapazes, ambos menores. Além do dono do apartamento, denunciou o filho de um delegado. Medicada num hospital, deu queixa à polícia e submeteu-se a um exame de corpo de delito. Nos últimos dez dias, o caso explodiu na internet.
A família Sirotsky publicou um comunicado informando a ocorrência do "lamentável episódio", lembrando que "confia integralmente nas autoridades policiais".
Para que se possa confiar mais nessas autoridades, o secretário de Segurança de Santa Catarina deve exonerar o delegado Nivaldo Rodrigues, diretor da Polícia Civil de Florianópolis. Numa entrevista gravada, ele disse o seguinte:
"Eu não posso dizer que houve estupro. Houve conjunção carnal. Houve o ato. Agora, se foi consentido ou não, se foi na marra, ou não, eu não posso fazer esse comentário, porque eu não estava presente".
A declaração do delegado é uma repetição da protofonia das operetas que começam investigando casos de estupro e terminam desgraçando quem os denuncia.
Noutra entrevista, com o inquérito concluído, o doutor informou que "o caso investigado é de estupro", mas ao especular (indevidamente) sobre a motivação do ocorrido informou: "Amizade, se encontraram, resolveram fazer uma festa. Se foi na marra, não sei".
Falta o delegado definir "marra". É crime manter relações sexuais com menores. Se isso fosse pouco, segundo a denúncia, podem ter sido dois os rapazes que usufruíram a "conjunção carnal". Se o delegado não podia dizer se o ato foi "consentido ou não", devia ter ficado calado. Afirmar que não pode opinar porque "eu não estava presente" beira o deboche.
Existe uma razoável literatura sobre estupros de grupo. Em geral, ocorrem quando a vítima está alcoolizada ou drogada, o que torna despicienda a questão do consentimento.
Se o doutor Nivaldo sair virgem do episódio, os catarinenses perderão um pouco de sua segurança, triunfarão as teorias conspirativas sobre a impunidade do andar de cima e prevalecerá uma racionalização do crime: não há estupros, há mulheres que não sabem se comportar. (Exceção feita às mães dos defensores dessa doutrina, e que Santa Maria Goretti proteja suas filhas.)

SONHO?
O alto comissariado petista acredita que o senador Aloizio Mercadante tem chances de vencer a eleição em São Paulo.
Desde que não alopre.

BUROCRACIA
Desejando votar na próxima eleição, uma senhora nascida na União Europeia, casada há 40 anos com um servidor do Estado brasileiro, resolveu se naturalizar.
Recebeu uma folha de papel com a "documentação exigida", listando 23 documentos. Alguns são banais, como a cópia autenticada do CPF. Outros dão algum trabalho, como uma ficha limpa no Serviço de Proteção ao Crédito.
O calvário começa quando a burocracia pede certidões negativas de ações cíveis e criminais bem como de protesto de títulos e os contratos de locação ou escrituras de compra e venda de imóveis em todas as cidades em que viveu nos últimos cinco anos.
Na essência, o governo pede duas famílias de documentos. Uma prova a existência do contribuinte. Na outra, e é aí que a porca torce o rabo, o cidadão tem que provar que não é bandido.
O ministro da Justiça, doutor Luiz Paulo Barreto, podia sapear as páginas do sistema de naturalização do governo americano.
Na teoria, é igual. Na prática, a pessoa tem que afirmar que não é bandido, anexando documentos de multas acima de US$ 500 ou, se houver, de pequenas sentenças. Em princípio, todo contribuinte é um cidadão honesto e de palavra.
Cada candidato passa por uma entrevista pessoal. Se mentiu, está frito.
A senhora desistiu. Seu marido serviu ao Brasil por mais de 40 anos, aposentou-se no topo da carreira e seu filho, com quase 40 anos, também serve ao Estado.

BEM NA FOTO
Nosso Guia ficou muito bem (pelos motivos que o PT nega), num parágrafo que ganhou no livro "This Time is Different" ("Desta vez é diferente - Oito séculos de loucuras financeiras"), dos economistas Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff). É uma pesquisa monumental sobre calotes de dívidas, crises bancárias e recessões econômicas.
A dupla de devoradores de números já passou pelo FMI, pelo Fed e pela banca e está hoje na academia. Eles estudaram centenas de crises ocorridas pelo mundo afora, formando uma base de dados jamais vista. Escrito num economês básico acompanhado por umas 300 tabelas, o livro foi publicado pelas universidades de Princeton e Oxford e vendeu 100 mil exemplares em menos de um ano.
A tese de Reinhart e Rogoff é simples: a história de que a crise não vem porque "desta vez é diferente", não passa de uma lorota. A crise de 2008 veio porque tinha que vir, e a próxima também.
Poucos são o governantes mencionados no livro. Lula faturou:
"No Brasil, a grande crise financeira de 2002 foi disparada, em boa parte, pela preocupação dos investidores com a possibilidade de virada em relação à política centrista do então presidente Fernando Henrique Cardoso, substituída por ações mais populistas do líder da oposição, Luiz Inácio Lula da Silva. A ironia foi que o esquerdista, vencedor, provou-se mais conservador na sua política macroeconômica do que temiam os investidores ou, talvez, do que desejariam alguns dos seus aliados".
(Na internet há uma prévia, publicada em 2008, com 123 páginas, infelizmente em inglês, sem a referência a Lula.)

PATROCINEM ATLETAS, NÃO DELINQUENTES

Se em março passado o Flamengo e os patrocinadores de Adriano e Vagner Love tivessem exemplado os dois atletas por manterem relações perigosas com a bandidagem do Rio de Janeiro, talvez o goleiro Bruno tivesse percebido que jogador de futebol não tem carta de impunidade.
Eliza Samudio, mãe do filho do goleiro, foi assassinada em junho.
Se os patrocinadores de atletas que tangenciam a marginalidade incluírem nos seus contratos cláusulas rescisórias em casos de comportamento antissocial, todo mundo ganha, inclusive suas marcas.
A grife de equipamentos esportivos Olympikus manteve sua imagem associada à de Bruno até o dia em que ele se entregou à polícia.
Os uniformes do goleiro estampavam também a marca da indústria de alimentos Batavo, que vende produtos para crianças.

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