sexta-feira, junho 18, 2010

WASHINGTON NOVAES

O sofrimento da África e o impasse no clima


WASHINGTON NOVAES
O ESTADO DE SÃO PAULO - 18/06/10
São estranhos os caminhos que impediram o Prêmio Nobel da Paz Nelson Mandela de estar presente à cerimônia de abertura da Copa do Mundo, em Johannesburgo. Afinal, ninguém lutou mais do que ele para a África do Sul ser a sede do evento. Mas não resistiu à tristeza de ver a bisneta morta num acidente em que o motorista do carro estava embriagado. Ele que, segundo uma neta, "quando a Fifa deu o Mundial à África do Sul, chorou como uma criança" (Estado, 10/6).
Mas o sofrimento é uma constante na vida dos sul-africanos, desde que o colonialismo europeu retalhou o país, misturou as 11 etnias que ocupavam o território, levou umas a lutarem contra outras e ainda implantou o apartheid. Lutar contra ele custou a Mandela 27 anos na prisão - de onde saiu para liderar a luta pacífica de seu povo contra a discriminação racial autorizada por lei. Vitorioso, ensinou à sua gente o que todos repetem hoje: "Perdoar, sim; esquecer, jamais."
E é nesse território onde a separação legal acabou, mas na prática continua, que ocorre a Copa, com a televisão levando para todo o mundo a imagem - aparentemente paradoxal - de pessoas que riem muito, cantam muito e dançam na rua sempre que se juntam três ou quatro sul-africanos. Em 2002, na Cúpula Mundial do Desenvolvimento, em Johannesburgo, o autor destas linhas perguntou a um jovem negro, motorista de táxi, onde seu povo, tão sofrido, encontrava tanta alegria. E ele, empertigado atrás do terno e da gravata: "O sofrimento nos ensinou que a nossa alegria tem de ser só nossa, vir de dentro; nada pode tirar nossa alegria."
Não faltariam razões para tristeza. O modelo do passado, banido da lei, continua na prática. Johannesburgo é dividida entre bairros ricos de brancos europeus (ou seus descendentes) e bairros pobres, como Soweto, com seus muitos milhões de negros. Só funcionam ônibus no começo da manhã, levando negros para o trabalho nos bairros e no comércio ricos, e antes de cair a noite, para levá-los de volta. Brancos visitantes são aconselhados a não andarem sozinhos nas ruas.
A África do Sul, segundo relatórios da ONU, é um dos dez países com maior desigualdade de renda no mundo, parte dessa África subsaariana que tem 555 milhões de habitantes (eram 292 milhões em 1981). No território sul-africano são 79,8% de "nativos" e 9,1% de brancos, além de 8,9% de "mestiços" e 2,1% de hindus e asiáticos; 44% da população vive em zonas rurais nesse país com 1,22 milhão de km2. Mas 5,7 milhões de pessoas (mais de 10% da população) são vítimas da aids, que atinge 350 mil a cada ano. Uma das consequências está nas estatísticas sobre órfãos (1,4 milhão), crianças de 0 a 14 anos vítimas da doença (280 mil), parte delas fruto dos inacreditáveis números de estupros (só os registrados na polícia, 36 mil em dois anos), que favorecem a disseminação da aids. A cada ano são 500 mil novos casos, 20% deles entre crianças. Por esse caminho, são mil mortes por dia.
Outro drama grave está no desemprego, que atinge 27% da população (22% segundo os números oficiais), mas com participação muito maior na faixa abaixo de 35 anos: 65%. Parte da violência está explicada aí: são 28 mil assassinatos/ano (o dobro do número brasileiro), a maior parte entre as pessoas mais pobres - 34% dos sul-africanos vivem com menos de US$ 2 por dia (menos de R$ 4), segundo o Banco Mundial. E só 5% dos negros conseguem chegar à universidade.
A África do Sul não é caso único nem isolado dessa herança do colonialismo no continente, que em muitos lugares provoca guerras terríveis entre etnias, frequentemente em disputa de recursos naturais de que algumas foram privadas pelas divisões impostas de fora. Para citar apenas alguns casos, a guerra interminável entre Ruanda, Burundi e Congo já deixou milhões de mortos; no Sudão, 200 mil pessoas foram expulsas de suas moradias, dezenas de milhares, assassinadas; Nigéria e Angola ainda não curaram suas feridas das guerras.
Não bastasse, a África (e a África do Sul) é uma das regiões que mais sofrem com "desastres climáticos", principalmente secas acentuadas. De 1995 para cá, a África do Sul já viu diminuírem em 4% seus recursos hídricos, num quadro extremamente difícil, já que foram vendidos "direitos" sobre parte deles - o que impede que as pessoas mais pobres tenham acesso. Os números sobre falta de saneamento são quase inacreditáveis em alguns lugares - no Chade, por exemplo, menos de 10% das casas têm instalações sanitárias; 90% fazem parte da terrível estatística que a Organização Mundial da Água repete e repete e já foi mencionada aqui: mais de 1 bilhão de pessoas no mundo defecam ao ar livre.
Sobram razões, assim, para a África subsaariana e os sul-africanos serem das vozes mais contundentes nas reuniões da Convenção do Clima - como ocorreu ainda nas últimas duas semanas, em Bonn. Ali, de pouco adiantaram as pressões de sul-africanos, dos demais subsaarianos, dos representantes dos países-ilhas (ameaçados de desaparecer com a elevação do nível dos oceanos). No texto lá discutido - na tentativa de chegar a um acordo para a reunião de novembro, em Cancún -, o G-77 e China disseram que "a ênfase foi colocada incorretamente nos cortes das emissões pelos países pobres, e não pelos ricos" (Estado, 12/6). Mesmo EUA e Europa, entretanto, também fizeram restrições à meta de corte global de emissões de gases de efeito estufa até 2050, situada "entre 50% e 85%" (calculados sobre as emissões de 1990, que eram menores que as de hoje).
Uma discussão tão empacada que o próprio secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, já anda dizendo que não considera provável que se chegue a acordo este ano. Pior, o demissionário secretário da convenção, Yvo de Boer, agora afirma que a discussão pode "levar ainda uma década".
Então, é preciso fazer como os sul-africanos: cada pessoa buscar dentro de si mesma razões para alegria.

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