sábado, junho 05, 2010

J. R. GUZZO

REVISTA VEJA
J. R. Guzzo

Alta ansiedade

"Jamais foi provada a existência de alguma relação 
entre peso baixo e felicidade; é perfeitamente possível
ser magro e infeliz ao mesmo tempo. É algo a pensar"

O jornalista americano A.J. Liebling, grande estrela da fase gloriosa da revista New Yorker, e um dos melhores e maiores garfos que as mesas de Paris já conheceram, dizia que pessoas que têm preocupações com a saúde não deveriam escrever nunca sobre comida. Que escrevessem sobre remédios, farmácias, hospitais – mas não sobre o que se deve fazer, e principalmente sobre o que não se deve fazer, na hora de sentar à mesa. Liebling, que passou seguidas temporadas em Paris entre os anos 20 e 50 do século XX, era capaz de bater refeições prodigiosas; numa época em que comer ainda era uma atividade considerada inocente, e numa cidade que oferecia os melhores restaurantes do mundo, ele raramente deixava de tirar todo o proveito possível das três oportunidades que o dia lhe dava para alimentar-se. Achava que só se poderia esperar o pior do interesse que os médicos, então, começavam a manifestar pelo colesterol. Exercício físico, em sua opinião, era um perigo para o peso; só lhe dava mais vontade de comer, enquanto um belo almoço jamais lhe deu vontade de fazer exercício algum. Descreveu um curto período em que decidiu internar-se num spa como "um episódio de insanidade temporária".

Sua filosofia de vida, provavelmente, não deve servir de modelo para ninguém – Liebling morreu com 59 anos de idade, em 1963, algo que, mesmo para a época, era uma partida prematura deste mundo. Mas talvez não seja demais sugerir que se receba com alguma simpatia, nos dias de hoje, a recomendação que ele fez tanto tempo atrás. Num mundo onde cresce sem parar a compulsão para obrigar as pessoas a levar uma vida "correta" no maior número possível das atividades que formam o seu dia a dia, a mesa tornou-se uma das áreas que mais atraem a atenção dos gendarmes empenhados em arbitrar o que é realmente bom para você. É uma provação permanente. Médicos, nutricionistas, personal trainers, editores e editoras de revistas dedicadas à forma física, ambientalistas, militantes da produção orgânica, burocratas, chefs de cozinha, críticos de restaurantes e mais uma multidão de diletantes prontos a dar testemunho expedem decretos cada vez mais frequentes, e cada vez mais severos, sobre os deveres do cidadão na hora de comer. Seria um alívio, sem dúvida, se sobrasse mais espaço para quem não está interessado, não o tempo todo, em receber lições sobre poli-insaturados, nutrientes minerais ou aportes adequados de fibras ao organismo – e gostaria, apenas, de ler ou ouvir um pouco mais sobre comida gostosa.
O fato é que toda essa gente, quase sempre com as melhores intenções, acabou construindo um crescente sistema de ansiedade em torno do pão nosso de cada dia – e o resultado é que o prazer de comer bem vai sendo substituído pela obrigação de comer certo. Para começar, o apetite é denunciado, na linguagem hoje corrente, como uma doença; não se trata mais de algo a ser satisfeito, e sim a ser combatido. "Como eliminar seu apetite", recomendam os títulos de reportagens dedicadas à causa da alimentação sadia. A linhaça, o sorgo e outras coisas alarmantes são apresentados como indispensáveis para uma vida melhor, junto com os iogurtes magros e os bolos secos – isso quando não se cobra a ingestão equilibrada de fitonutrientes, compostos fenólicos ou lipídios não graxos. É preciso, também, comer de forma a preservar a biodiversidade e a reduzir as emissões de carbono; desaconselha-se severamente, por exemplo, o consumo de alimentos produzidos a mais de 150 quilômetros de distância da sua cidade, por exigirem transporte dispendioso em combustíveis e poluidores da atmosfera.
Não se vê muita alegria em nada disso. Modelos, atrizes e outras pessoas que precisam pesar pouco para fazer sucesso chegam aos 30 anos de idade, ou mais, praticamente sem ter feito uma única refeição decente na vida. Propõe-se, como virtude alimentar, um mundo sombrio de pastas, mingaus, poções, soros de proteína e sabe-se lá o que ainda vem pela frente. Nem na própria casa, com frequência, o indivíduo pode comer em sossego – arrisca-se aos olhares reprovadores dos familiares e a custosas discussões sobre o que ele deve fazer "pelo seu próprio bem". Não está claro o que se ganha em toda essa história. A perspectiva de morrer, um dia, no peso ideal? Jamais foi provada até hoje a existência de alguma relação entre peso baixo e felicidade; é perfeitamente possível ser magro e infeliz ao mesmo tempo. É algo a pensar.

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