domingo, maio 09, 2010

CELSO MING

Cobertura para a folia
Celso Ming
O ESTADO DE SÃO PAULO - 09/05/10 

O presidente do Banco Central Europeu (BCE), Jean-Claude Trichet, tem fama de durão, mas sabe-se lá até quando vai resistir às pressões crescentes, do mercado e dos governos, para que ordene a recompra de títulos públicos que hoje estão na carteira dos bancos.

A justificativa é a de que os grandes bancos voltaram a estancar o crédito uns aos outros porque temem que o calote soberano possa quebrá-los. E essa atitude, por sua vez, está trazendo de volta a trombose no crédito que vai paralisando a economia. As dificuldades para refinanciar os US$ 143 bilhões da dívida grega comprovam a secura do mercado de crédito.

Os números variam, mas hoje se calcula que os bancos carreguem US$ 1,3 trilhão em títulos públicos emitidos por Grécia, Espanha e Portugal.

O argumento em favor da grande operação de resgate de títulos por parte do BCE, se algum ensinamento ficou da primeira etapa dessa crise, é o de que os bancos centrais não podem ficar à espera de que a mão invisível se encarregue do ajuste. Esparramar dinheiro por meio da recompra de títulos, sem olhar muito para sua qualidade, foi a decisão correta do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) durante a crise de 2009, que encheu seu balanço com US$ 1,3 trilhão em títulos podres e com outros US$ 300 bilhões em títulos do Tesouro dos Estados Unidos. Se assim foi e se assim se salvou a economia americana, por que o BCE não vai pelo mesmo caminho?

Uma das objeções é técnica. A partir do momento em que o BCE passasse a recomprar títulos soberanos e, em contrapartida, injetasse dinheiro na economia, estaria infringindo duas regras de ouro da política monetária. Em primeiro lugar, emitiria moeda e, assim, contribuiria para o que pudesse vir a ser um grave surto inflacionário. Em segundo lugar, daria cobertura para a irresponsabilidade fiscal dos governos da área do euro. Enfim, essa poderia ser considerada uma operação de empréstimo de última instância para desmandos orçamentários desses governos.

Esse segundo ponto merece mais análise. Boa parte desses títulos é o resultado do desrespeito das regras da União Monetária Europeia. Os governos gastaram muito além do déficit tolerado, de 3% do PIB, e se endividaram muito além do limite dos 60% do PIB, como está no Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). Se recomprasse esses títulos, o BCE se apresentaria como financiador da folia fiscal.

Como ficou dito, o Fed fez quase a mesma coisa quando, em 2009, se comprometeu a recomprar até US$ 300 bilhões em T-Bonds e a essa operação chamou de "afrouxamento quantitativo" (quantitative easing), sob o argumento de que teria de criar demanda para os títulos americanos, para que os juros de longo prazo não ficassem tão elevados a ponto de inviabilizar a sua política monetária.

Mas o principal obstáculo a essa atitude do BCE é político. Apenas a ameaça de uma catástrofe de grandes proporções levaria os alemães a admitir que o sistema financeiro europeu fosse socorrido com uma gigantesca emissão de moeda. Em outras palavras, a situação precisaria piorar para que o BCE tivesse condições políticas para atender aos apelos de recompra de títulos que hoje estão com os bancos.

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