quarta-feira, maio 26, 2010

BRASIL S/A

Pano verde da crise
Antonio Machado

CORREIO BRAZILIENSE - 26/05/10

Governos são os crupiês do cassino global, em que moedas e dívidas são as fichas das apostas


Dólar para cima, euro para baixo, bolsas em queda, liquidez curta e petróleo caindo outra vez puseram o mercado financeiro no centro dos acontecimentos. As notícias ruins se renovam a favor da aposta exibida nas telas dos mercados futuros, dando a relação euro/dólar a US$ 1,15 em 60 a 90 dias. A instabilidade é o seu fio condutor.

A especulação só se aproveita das fraquezas dos governos, hoje da União Europeia, como ontem foram dos EUA, das contradições de suas economias endividadas e dependentes do mercado — que tentam domar — para financiar seus deficits e dívidas públicas, e das confusões criadas por regimes despóticos, como os do Irã e Coreia do Norte.

A semana começou com a notícia de que o Banco Central da Espanha acudira um pequeno banco insolvente e segue com a elevação a nível máximo da tensão entre as duas Coreias, que ateou fogo à Ásia.

A do Sul, capitalista, aliada dos EUA, com tropas estacionadas na fronteira que divide a península desde a guerra na década de 1950, acusou a do Norte, protegida da China, de ter afundado, em março, um navio de sua frota militar com um torpedo. Foi ato de guerra.

O Norte comunista negou, o Sul cortou relações econômicas com seu irmão, que reagiu com o único instrumento de dissuasão que possui: o militar e a chantagem nuclear. Pôs suas tropas de prontidão para a guerra, sugerindo como noutras vezes não ter nada a perder.

Arruinada, a Coreia do Norte é um fardo tolerado pela China como barreira não só ideológica à presença dos EUA em sua fronteira, se a ditadura familiar que manda no país caísse, vindo a ser engolida pelo naco rico e pujante do Sul. É improvável que cheguem a tanto.

Contra o Sul, os EUA e o Japão, mas também para forçar a China a meditar sobre as consequências de abandoná-lo, o ditador Kim Jong-Il, que sucedeu o pai e prepara um filho para sucedê-lo, toca um programa de armas nucleares e mísseis balísticos que parece estar conectado às intenções guerreiras da teocracia que governa o Irã. É esse o nó que o presidente Lula foi tentar desatar e apaziguar.

Restos da Guerra Fria
A Ásia, hoje próspera e afluente, é desafiada por esses restos dos conflitos inacabados da Guerra Fria, quando EUA e a desfeita União Soviética se enfrentavam com a mão de gato de pobres diabos mundo afora. As duas Coreias, tecnicamente, continuam em guerra, que não acaba, toma novas formas, no Iraque e no Afeganistão.

Índia e Paquistão se hostilizam e se anulam cada qual sentado no próprio arsenal nuclear, que Irã, ex-potência regional, muçulmano, mas não árabe, parece ambicionar numa dimensão geopolítica em que, tanto quanto os EUA, assombra o gigantismo enigmático da China.

Vítimas nada inocentes
Especular com moedas, ativos financeiros, ações e commodities em tal ambiente conflagrado não é apenas fácil, é meio de vida. Nos mercados globais se encontra de tudo: do especulador clássico, que a ficção desenha com charuto na boca, olhar de cobra e filantropo por conveniência, ao burocrata das mesas de operações de bancos centrais e fundos soberanos de países superavitários — os grandes aplicadores do mundo. Não são visíveis porque operam por meio dos grandes bancos e de gestores ainda maiores de fundos de hedge.

É contra coalizão de financistas tão magnífica quanto aos meios e à capacidade de ocultar suas intenções que os governos do Grupo dos 20 pretendem coibir a liberdade e mesmo fatiar os bancos, como se fossem eles próprios vítimas inocentes da orgia financeira global.

Quem gira a ciranda
Da proposta do governo Barack Obama de tirar de banco comercial a faculdade de aplicar recursos próprios em ativos de risco à dos países do euro de tributar as operações financeiras globais, todas tangenciam a causa da ciranda. Para que ela gire, é preciso papel e liquidez. O dólar é o combustível, devido aos deficits dos EUA, mas sem os quais o fenômeno da globalização seria tese acadêmica.

O dólar provê o papel-moeda em formato digital, pois não físico, como capital de giro dos negócios globais. Outro insumo é a massa de títulos de dívida pública. Ela não existiria sem liquidez para financiá-la, que, por sua vez, se origina dos deficits financiados pela dívida. No Brasil da hiperinflação, o cassino também era dos mais movimentados. Foi só o governo tomar controle do deficit e da dívida pública para o cassino perder o esplendor. Assim é: bancos, fundos e governos são peças não antagônicas de um mesmo processo. Mas isso os governantes não admitem: se o fizessem, seriam vistos como os crupiês em que moedas e dívidas são as fichas das apostas.

A ingenuidade alemã
Dá para sacar porque os governos da Inglaterra e dos EUA, os maiores centros financeiros globais, não apoiam a luta da chanceler alemã, Ângela Merkel, contra os mercados. Nem a França apoiou, mas, talvez, por ser dos mais endividados na Europa, com um sistema financeiro essencialmente estatal. O que se trata é de dar ordem à farra, não eliminá-la, como julga Merkel, cuja economia é superavitária, como a da China e as dos produtores de petróleo do Oriente Médio.

Tome-se o mercado de petróleo: os contratos futuros, que de fato formam o preço do produto, são 12 vezes maiores que o de entrega física. O cartel da Opep é tido como grande aplicador, por meio de bancos e fundos globais. Organizem-se as finanças globais, ponham-se os países em acordo, e a especulação amansa. Mas é pedir muito.

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