terça-feira, abril 06, 2010

ARNALDO JABOR

O camarada de nariz cor-de-rosa
O GLOBO - 06/04/10


Eu tinha 18 anos e vivia na UNE, ali na praia do Flamengo, ao lado do botequim Cabanas, onde fundamos o Centro Popular de Cultura (CPC), saindo pelo Brasil para "conscientizar o povo alienado, a classe média conformista e os operários ignorantes e explorados do Terceiro Mundo, com uma classe dominante títere do imperialismo norte- americano".

Éramos assim em 1963. Como eu era orgulhoso da minha condição de comunista... Sim. Eu pensava: "Como sou feliz!... Somos o sal da terra, minha vida tem um sentido...".
Éramos tão românticos - antigamente, tudo era romântico... Com a luta armada, conhecemos a tragédia previsível.
Lembro-me que muitos queriam derrubar o Exército sem uma reles pistola e eu pensava: "Meu Deus... eles vão morrer e não sabem...".
Vejo na memória a grande bandeira negra na porta da UNE quando o Eisenhower visitou o Brasil: "We like Fidel". Por isso, sofro ao ver o Fidel Castro caquético e trêmulo dentro de um abrigo "Adidas" e me pergunto: "Por que ‘Adidas’?...".
Falávamos em revolução como de futebol. O PCB e o socialismo eram imagens impalpáveis que viriam quase que por magia, sem lutas, sem sangue... Era como um direito que tínhamos porque éramos do lado do bem...
Tenho saudades desse tempo nacionalista, onde tudo era claro, quando os operários eram figuras alegóricas, de dorsos fortes, com martelos na mão.
Eu e meus colegas fazíamos o jornal dos estudantes e ficávamos até altas horas na oficina vendo os gráficos fecharem as páginas no chumbo. Olhávamos fascinados aqueles homens, cobrindo-os de perguntas e gentilezas. E os operários até estranhavam nosso forte amor.
"Serão veados?", pensava o povo. Não, éramos comunistas. A miséria era-nos irresistível. Como não cair na sedução revolucionária, com Che dirigindo Cuba, barbudos e jovens como beatnicks políticos?

Eu me lembro de um amigo que falava: "O marxismo supera a morte!". "Como?", dizia eu espantado. "Claro; uma vez dissolvido no social, o indivíduo perde a ilusão pequeno-burguesa de ser uma pessoa. Ele só existe como espécie, como ser social. E aí não morre. O marxista não morre".
E eu, em êxtase religioso, sonhava com a vida eterna.
Havia um chefe do Partidão que me fascinava. Ele era o camarada Jacques, aliás Tadeu, aliás sei-lá-o-quê. Ninguém sabia o nome dele direito; era judeu, triste, tinha o nariz cor-de-rosa em forma de couve-flor e usava meias brancas soquete com sapatos pretos "tanque" Polar, de onde sobravam os gordos tornozelos.
Sempre fui meio louco e ficava olhando esses detalhes, pensando: "Como ele pode ser tão heroico com essas meias brancas e esses sapatos?". Para o doce camarada Jacques, tudo era culpa do "imperialismo". "Qual é a ‘contradição principal’ do Brasil?", perguntava. "É o imperialismo norte-americano!", respondíamos como num colégio.
Chamava-se a isso "dar assistência à base estudantil". Um dia, eu estava num apartamento ("aparelho") conjugado em Copacabana, onde havia um sofá-cama velho. Diante de mim, a bela companheira Marina. Esperávamos os outros camaradas, para mais uma reunião da "base".
Ninguém chegava. De repente, eu estava em cima da Marina, beijando-a, traindo a revolução num infinito prazer culposo. Batem na porta. Em pânico, nos arrumamos. Entrou o chefe de nariz cor-de-rosa. Eu olhava Marina.

A culpa ali não era do imperialismo. Era nossa.
No sofá-cama, havia uma mancha úmida. Ninguém viu. Ao lado da mancha, saía um chumaço do estofamento. Naquela mancha havia uma vida nova para mim (eu era quase virgem). No chumaço de paina, eu vi que alguma coisa ia fracassar na revolução brasileira.
Como salvar o país com um chefe de nariz cor-de-rosa e um exército de sofás esfarrapados? Nossa alma ibérica rançosa, nosso mal endógeno de patrimonialistas, nada disso nos interessava. O Brasil era um país "puro", e toda a culpa de nosso atraso era só do "imperialismo norte-americano", a contradição principal.
Na época, o perigo ianque era um mal geral que nos ameaçava e absolvia ao mesmo tempo. E eu ficava olhando o nariz cor-de-rosa de couve-flor do camarada Jacques, enquanto sonhávamos com a revolução que faríamos com a ajuda do governo Jango (até para fazer revolução tínhamos de contar com apoio do Estado).
Em 64, quando caiu tudo, com a chegada dos tanques de guerra, com o fogo na UNE, com todas as ilusões perdidas, o pobre camarada nos reuniu e murmurou trêmulas palavras como "subestimamos o imperialismo", "hesitação da militância". Seu nariz estava branco de tristeza.
O nosso camarada Jacques, supervisor da base da UNE, caiu na clandestinidade. Anos depois, eu o vi passando na rua, oculto atrás de uma plástica, com o nariz operado. Naquele nariz falso, artificial, detectei a chegada da pós-modernidade, o prenúncio da queda do muro de Berlim.

Penso nisso com saudade e medo porque hoje, 40 anos depois, neste governo há muitos babacas que ainda pensam daquele modo e fazem a cabeça do nosso Lula, que está delirando em "fremente lua de mel consigo mesmo".
Penso nisso porque se esvaíram os sonhos mais belos e porque, depois do Lula, que soube (bendito seja...) conter os jacobinos saudosos da Guerra Fria, pode haver a vitória do "regressismo" mais burro, de uma velha e fracassada visão do Estado-pai.
Podem jogar fora todas as conquistas da modernização democrática.
Se fosse vivo, o querido camarada de nariz cor-de-rosa perguntaria: "Qual a contradição principal?".
Hoje, responderíamos: "É a ‘revolução’ dos oportunistas e incompetentes, camarada Jacques".

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