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Uma grande antropóloga inglesa, Mary Douglas, escreveu um livro capital, intitulado "Pureza e perigo". A tese é que, quanto mais puro e inocente, mais sujeito a despudores, pecado e sujeira. Há, como sugere Mary Douglas, uma complementaridade entre essas oposições de tal sorte que, quanto mais se salienta um lado, mais o seu contrário adquire força como pano de fundo ameaçador e potencialmente intrusivo. O povo escolhido é, como o cordeiro de Deus, o mais perseguido. O mais pobre é, como diz a demagogia nacional, o mais honesto: a única categoria que precisa de governo! Claro que temos que descontar os saques realizados pelos "pobres" na ocasião dos terremotos do Haiti e do Chile. Não foi a desigualdade que os promoveu, mas a legitimidade que acoberta o abandono da lei em contextos onde vigora o "salvese quem puder". Como não há mesmo igualdade, exceto perante a lei, e mesmo assim como forma ideal, todo sistema está sujeito a saque. Quem não se lembra dos "verões quentes" ocorridos em 1964, 65, 66, 67 e 68 em, respectivamente, Nova York, Los Angeles, Cleveland, Newark e Detroit? Do mesmo modo e pela mesma lógica relacional ou hierárquica, o mais brilhante e generoso é o que mais provoca inveja. O defeito de ter sucesso no Brasil, denunciado por Tom Jobim, é fácil de ser sociologicamente resolvido. Numa sociedade onde tudo tem dono e basta ser filho desta ou daquela família para ter sucesso, os bens já estão divididos. O sucesso que machuca é o êxito inesperado, como o dos jogadores de futebol e o de alguns artistas e intelectuais enviesados que não fazem parte de certas turmas, partidos e patotas. Se você acha que estou exagerando, leia a história do bíblico José, traído pelos irmãos e vendido a um mercador. Não foi por acaso que ele se transformou num grande decifrador de sonhos, pois quem tem seus sonhos esmagados pelo ressentimento e pela arrogância dos que estão na sala do lado torna-se um especialista em ilusões. No Brasil, há um elo nítido entre cinismo e canalhice. O larápio dos bens públicos, o bandido que usa o cargo oficial em benefício próprio e o ocupa para realizar falcatruas; o salteador inominável que, em nome do povo e da igualdade, guarda dinheiro na cueca e na meia, arma esquemas para comprar adversários, diz que não sabia e se escuda no processo eleitoral, difamando-o de modo vil, sente-se ultrajado quando o pegam com a mão na massa. Mesmo quando um filme estampa sua atuação como chefe de uma quadrilha de altos funcionários que, na realidade, são meros larápios dos bens públicos. Não é difícil responder por que o Brasil tem sido vítima desta praga. É que o país tem sido uma grande feitoria. O governo geral e a vinda dos Bragança para esse lado do mundo foram uma conveniência. Os portugueses jamais governaram, como revela, entre outros, o maldito Eça de Queiroz, igualitariamente. Para o estilo aristocrático e despótico de governo, o governante (e as autoridades em geral) não são sujeitos da lei. Quem faz e vigia o cumprimento das normas não precisa segui-las, diz um axioma do nosso sistema de poder. Daí o elo espúrio. Ser puro é perigoso e a canalhice não produz vergonha, mas indignação! No Brasil, os roubos mais ofensivos são percebidos pelos seus praticantes como ofensas e calúnias porque é uma obrigação não escrita roubar o erário e usá-lo a seu bel-prazer. Trata-se de um prêmio pela vitória eleitoral que trouxe ao eleito o Estado como um presente. O ladrão de galinha chora e pede desculpas, mas o ladrão dos recursos que foi encarregado de gerenciar; esse canalha sente-se ofendido e, imitando as grandes figuras políticas do nosso tempo e o próprio Jesus Cristo, diz que perdoa as nossas suspeitas porque nós, os seus financiadores, não sabemos o que estamos fazendo! Chegam a rezar agradecendo a Deus pela propina. A indignação dos ladrões públicos decorre da surpresa de descobrir-se como sujeito da lei e da impessoalidade. O famoso "eu não sabia" é revelador da estupefação dos poderosos quando os jornais denunciam que numa democracia a impessoalidade é uma decorrência da igualdade de todos perante as regras que não excluem - como ocorre em Cuba e no Irã - ninguém. Dessa impessoalidade como princípio, decorre a própria dinâmica dos regimes democráticos, como mostrou, faz tempo, Tocqueville. A indignação dos canalhas e dos que usam e abusam do poder é a contrapartida dialética deste Brasil atual, onde vale tudo e a velha malandragem ultrapassa todos os limites. Ser puro é perigoso. E ser corrupto e bandido? É ser inocente? Será possível que só existam inocentes no cenário das falcatruas nacionais? Fico entre o comovido e o derrotado com essa reação indignada dos canalhas que, em seguida, adoecem. Que sociedade curiosa. Eis um sistema no qual o honesto é o merda e o ladrão em nome do povo sente-se - por mais que roube - injuriado e ofendido! Será porque ele tira o de todos que, até hoje, não é de ninguém? Será porque ele tem a licença eleitoral de ser o dono desta coisa chamada Brasil que permanece sendo uma grande feitoria? Temo que sim! |
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