sábado, março 27, 2010

MÍRIAM LEITÃO

Felizes, separados
O GLOBO - 27/03/10

O presidente Lula não gosta de nós. Que boa notícia. Perigoso seria se o presidente achasse que a imprensa brasileira faz exatamente o que ele quer e dá apenas a sua visão dos fatos. Imagine que monótono seria se todos os meios de comunicação se contentassem em registrar as avaliações do governo sobre suas próprias ações, se Lula jamais fosse criticado, se ninguém tivesse dúvidas.

Deve ser assim a imprensa chinesa, aquele país onde até um site de busca tem que ser censurado, porque nem os fatos passados, há 21 anos, podem ser contados como eles foram, como o massacre da Praça da Paz Celestial. Com uma imprensa assim sonha Hugo Chávez quando fecha TVs, persegue jornais, prende jornalistas, opositores e quer controlar a internet.

Foi assim, absolutamente do gosto dos governantes, os tempos soviéticos do “Pravda” e da Agência Tass.

Em Cuba, ainda é assim.

Fidel Castro não tem reclamações do “Gramma”, e jornalista cubano que pensa diferente está na cadeia, fazendo greve de fome, ou se arriscando nas mídias sociais.

Na Coreia do Norte, então, a imprensa deve ser considerada pelo governo como de muito boa fé porque nada diz de diferente.

Aqui, os governos continuarão contrariados, felizmente.

O principal candidato de oposição, José Serra, também faz críticas à imprensa.

Que boa notícia.

Aqui, o governo Lula tentou duas vezes criar mecanismos de controle da imprensa, como agências e conselhos. Volta a tentar agora, mas a sociedade tem solenemente enfrentado qualquer tentativa em transformar seu desgosto com a imprensa em lei coercitiva.

O governo investiu muito em ampliar a imprensa oficial.

Deveria ficar contente com ela porque a versão oficial dos fatos está tendo ampla divulgação. Por alguma razão isso não o satisfaz e quer esse mesmo enfoque nos órgãos de comunicação não governamentais.

A esta altura, aos 40 minutos do segundo tempo, do seu período de oito anos no governo, Lula ainda reclama da imprensa com acusações feitas como “má fé”. Tudo bem, como a imprensa é livre, e ele tem direito à sua opinião a respeito da imprensa, os jornais registram a crítica, com destaque, toda vez que ele a faz. Ele tem uma predileção por escalar o tom de voz em períodos eleitorais.

Coincidência, certamente.

Lula disse uma frase brilhante, ao falar mal da imprensa.

É assim: — A mim, não me importa que fiquem incomodados, porque eu ficaria incomodado se o contrário acontecesse — disse Lula.

Está aí um ponto de concordância; um texto que pode ser subscrito por quem pensa o oposto do que ele pensa. Seria de incomodar a imprensa também, se ela jamais incomodasse o governo.

A crítica de que a imprensa tem predileção por noticiar a “desgraça” já não tem o mesmo brilhantismo; não é inédita e é antiga. Os jornalistas têm até respostas prontas para ela: se tudo acontece como o previsto, não rende mais do que uma linha no jornal, poucos segundos na TV, e não completa nem os 140 toques do twitter; se há alguma descontinuidade, inesperado, espanto, aí sim é notícia. É da natureza do nosso elemento, o inesperado. Às vezes, pode ser o bom imprevisto.

Ao contrário do que o presidente imagina, ele já ocupou páginas e páginas do jornal com o bom espanto. Por exemplo, quantas vezes foi dito que, ao contrário de tantas previsões, seu governo manteve a defesa da estabilidade da moeda? Notícia boa. Inesperada. É que durante tantos anos os programas do PT e os discursos do então candidato Lula falaram contra as bases da estabilização da moeda, que temia-se pelo seu desempenho nesta área.

O presidente Lula tem medo de que daqui a 30 anos os estudantes estejam estudando “mentiras” registradas pelo que ele chamou de “tabloides” de hoje. O presidente deve ficar tranquilo quanto a isso. A história costuma depurar eventuais excessos, confrontar dados, revisitar os fatos. Até porque há versões diferentes em cada jornal. Dentro de um mesmo órgão há, frequentemente, artigos que são diferentes das matérias, que divergem dos editoriais.

Liberdade produz essa diversidade. A imprensa comete erros, e se corrige ou publica a opinião de quem se sente atingido. E o leitor, telespectador, ouvinte, vai formando a sua opinião ao confrontar esses dados e informações diferentes.

O presidente Lula disse ainda que se os jornais “não querem saber por seus olhos, poderiam saber pelas pesquisas de opinião pública”.

Essa ideia é péssima.

Imagina se a imprensa se guiasse no noticiário pelas pesquisas de opinião sobre o governante? Seria uma espécie de jornalismo pró-cíclico: notícias boas quando a popularidade do governante é alta; notícia ruim quando a popularidade é baixa. É melhor deixar tudo separado: notícia e pesquisa de opinião.

O que é condenável nas críticas do presidente Lula à imprensa é a reiterada e infundada acusação de preconceito.

Esse ponto faz mal ao país como um todo.

Cada vez que ele se diz perseguido pelos “letrados”, por não ser um “letrado”, pode estar incentivando um jovem, que o admira, a deixar os livros de lado. E sem os livros o Brasil não vai realizar nossos sonhos comuns de progresso.

Esta semana um empresário de tecnologia da informação me disse, numa entrevista, que para ser um bom funcionário dessa indústria não basta ser hábil em todos os equipamentos de informática. É preciso ter capacidade de concentração.

Os livros são o grande aliado neste treino. No mais, o presidente deve fazer sempre que quiser seu “desabafo”, como disse, contra a imprensa. Se ficar combinado, de que ele não irá além das palavras.

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