quinta-feira, março 04, 2010

MÍRIAM LEITÃO

Razão dos outros

O Globo - 04/03/2010


Num debate qualquer entre Brasil e Estados Unidos, eu preferia concordar com o Brasil. Por isso, salve o algodão, que é um dos poucos assuntos que o Brasil está coberto de razão. Mas, convenhamos, deixar que uma visita da secretária de Estado americana tenha no centro um debate sobre o programa nuclear do Irã é perder o nosso precioso tempo.

No algodão, o Brasil ganhou o direito de retaliar, dado pela Organização Mundial de Comércio, depois de provar que os EUA subsidiavam de maneira irregular o seu produto. A razão está conosco. O problema começa quando o governo brasileiro abraça causas internacionais.

O que leva o governo a gastar tanto tempo, munição, reputação, defendendo a ditadura do Irã, que reprime e mata manifestantes, que na área nuclear não cumpre determinações internacionais, mente e esconde partes do seu programa? O Brasil nada tem a ganhar ficando a favor de um país que a comunidade internacional condena, e essa não é uma questão que empolgue os brasileiros. Uma boa diplomacia tem que refletir os temas que são questões que preocupam o país. O programa nuclear iraniano, com todos os indícios de que não é bem intencionado, não é uma causa que mobiliza brasileiros.

Perguntados, certamente eles diriam que é mais sensato que o Irã se submeta à mais rigorosa fiscalização internacional. Quem compraria uma declaração de que o programa é para uso pacífico feita por Mahmoud Ahmadinejad? Só um ingênuo.

Vamos imaginar que o Brasil pense que assim se credencia para o Conselho de Segurança da ONU. Com sua defesa de um governo ambíguo pode estar fazendo o oposto: apresentando-se como ingênuo demais para o novo papel que quer ter no cenário internacional.

Como defender também o governo da Venezuela diante de tantas, tão frequentes e explícitas demonstrações de ataque à imprensa livre naquele país? A menos que tenha uma vocação por causas perdidas, o Brasil está errado em suas escolhas recentes de causas internacionais. Uma coisa é manter boas relações comerciais com os países, outra, bem diferente, é sustentar os pontos controversos defendidos por estes governos.

Uma diferença elementar, que a diplomacia de Lula não consegue perceber.

O governo de Cuba está decrépito. Por que um país vai defender o regime de Cuba? Defender o fim do embargo a Cuba o Brasil tem feito há décadas, e é justo. O que não é cabível é que um regime que está matando dissidentes há cinco décadas use o presidente Lula, e sua boa reputação internacional, como avalista dos seus crimes.

A frase de Fidel Castro “Lula sabe que nunca matamos, nem torturamos em Cuba” recebeu um silêncio aquiescente em Brasília. Fica assim o presidente do Brasil sabedor de uma informação que é só dele. Ninguém mais sabe isso. Porque o mundo inteiro pensa o contrário: que em Cuba dissidentes ainda são executados.

A secretária de Estado Hillary Clinton defende também que o Brasil reconheça o governo de Honduras. Há algum motivo para não fazê-lo? O governo foi eleito, ninguém acusou ou comprovou qualquer irregularidade. Mesmo condenando a retirada de Manuel Zelaya do poder pela força, o fato é que o mandato dele já acabou. Nossa relação é com Honduras e não com Zelaya. Qual é o motivo mesmo para não reconhecer o novo governo? Nós temos vários assuntos a discutir com os Estados Unidos. Hillary está até um pouco atrasada nesta viagem.

Só mais de um ano depois de iniciado o governo é que ela tem tempo de fazer um périplo pela América do Sul, confirmando a pouca atenção que todos os governos americanos dão para a região. O álcool brasileiro enfrenta uma absurda e excessiva barreira à entrada no mercado americano. Alguns dos grupos de lobby pró-Brasil na questão da sobretaxa do álcool deram recentemente sinais de que abandonam a defesa exatamente como reação à posição brasileira no Irã. Há, certamente, inúmeras outras questões que são mais de nosso interesse do que os direitos que tem o Irã de desrespeitar a comunidade internacional.

O argumento do Brasil de que “não é prudente encostar o Irã contra a parede” tem dois erros. Primeiro, aceita a chantagem, e, segundo, parte do pressuposto de que ele está sem alternativa. Recentemente, foi oferecida uma alternativa ao Irã. Ele entregaria urânio a vários países, que entregariam de volta material radioativo enriquecido.

O país se recusou. Até a Rússia, que sempre foi pró-Irã, e que ajudou a construir uma central nuclear no país, se irritou com essa posição intransigente.

No final do dia de ontem, Hillary foi a São Paulo participar de um debate com empresários americanos e alunos da faculdade Zumbi dos Palmares, criada como parte das ações afirmativas de formação e qualificação dos negros brasileiros. Foi ela quem pediu para ter um encontro com empresas americanas em algum projeto de responsabilidade que apoiassem. Foi escolhido o local como símbolo de uma das questões que o Brasil deveria discutir com mais frequência e sinceridade: as desigualdades raciais brasileiras.

Um país que tem um presidente negro, como Barack Obama, pode e deve tocar nessa ferida, que uma grande fatia dos brasileiros prefere simplesmente negar com argumentos datados e repetitivos.

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