sábado, março 06, 2010

CLÓVIS ROSSI

Mercados içam a bandeira negra


FOLHA DE SÃO PAULO - 06/03/10


Episódios recentes ilustram uma subversão das regras do jogo: é o sistema financeiro quem controla os governos


NA SEMANA passada, o "Wall Street Journal" deu conta de rumores de que um grupo de investidores, capitaneados pelo inoxidável George Soros, havia se reunido para discutir a estratégia para atacar o euro. Objetivo: levá-lo à paridade com o dólar.
Até ontem à tarde, o objetivo, se o rumor for verdadeiro, não havia sido alcançado. O euro, na hora do fechamento dos mercados europeus, estava a US$ 1,35. Mesmo assim, 10% abaixo da cotação de US$ 1,50 que foi mais ou menos a constante no início do ano.
O importante, no caso, não é se o objetivo foi ou não alcançado. Nem se houve ou não a tal reunião conspiratória.
O essencial é que ela, bem como o objetivo traçado, é verossímil. Ainda mais por envolver Soros, um nome lendário no mercado de apostas: em 1992, ele ganhou US$ 1 bilhão apostando contra a libra esterlina. O Tesouro britânico perdeu 3,4 bilhões de libras, que, a valores de hoje, corresponderiam a R$ 8 bilhões, quantia ponderável em qualquer moeda, em qualquer tempo.
O que me choca no episódio é a maneira digamos normal como o caso foi noticiado, como se tratasse de uma reuniãozinha de Beatas de Maria para organizar uma jornada de orações.
Não é. São corsários erguendo a bandeira negra para o ataque.
Imagine o escândalo que haveria se fosse o contrário, se um punhado de chefes de governo tivesse se reunido para estabelecer rígidos regulamentos para os mercados financeiros. Basta lembrar o que aconteceu na sequência do pacote que o presidente Barack Obama anunciou em janeiro, exatamente com esse objetivo. Obama disse, em dado momento: "Se [o sistema financeiro] quer guerra, terá guerra".
Posto de outra maneira, ergueu a bandeira das listas e estrelas para enfrentar a negra dos corsários. Reação da banca, na palavra de Charles Dallara, o executivo do Instituto da Finança Internacional, o conglomerado das grandes instituições planetárias: "É um moleque".
O episódio é apenas mais uma ilustração da subversão das regras do jogo que está em curso já faz algum tempo, sem que haja reações proporcionais ao tamanho da subversão: em vez de os governos controlarem os mercados financeiros, são os mercados financeiros que impõem suas regras ao governo.
No caso da Grécia, o coro predominante, o chamado pensamento único, só fala dos abusos praticados pelos governantes de um desses países-cigarras, que vivem fazendo farra enquanto outros trabalham duro.
É claro que houve abusos e maquiagens estatísticas na Grécia. Mas e o Reino Unido, a menina dos olhos do pensamento único desde Margaret Thatcher, passando pelos trabalhistas que convergiram para essa linha de comportamento a partir da ascensão de Tony Blair? A libra esterlina também foi atacada no início da semana e fecha-a no valor mais baixo em nove meses.
Claro que o Reino Unido também tem um baita deficit, mas incorreu nele para impedir o colapso da economia, na esteira da crise que se tornou exponencial com a quebra do Lehman. Os governos gastaram US$ 11 trilhões para salvar os mercados, o que dá oito "Brasis", grosso modo.
Mas quem disse que corsários têm piedade ou ética?

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