sexta-feira, março 05, 2010

CID HERACLITO DE QUEIROZ


O pacote fiscal de Drácon

O ESTADO DE SÃO PAULO - 05/03/10


"Nunca antes neste País", para usar uma expressão em voga, um governo submeteu ao Congresso Nacional um conjunto de projetos de lei com tantas e tão severas violências contra os contribuintes como os que compõem o que pode ser denominado de o "pacote fiscal de Drácon" ? ou seja, inspirado no duro e cruel legislador ateniense do século VII a.C., que, segundo se dizia, escrevia as suas leis não com tinta, mas com sangue.

Integram o pacote os Projetos de Lei (PL) nº 5.080/09 e nº 5.082/09 e o Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 469/09, os quais, sob o pretexto de "modernizar" a legislação atual, instituem diversos instrumentos de tortura e violência, próprios de ditaduras, para pressionar e amedrontar os contribuintes, no pressuposto de que todos sejam sonegadores de tributos. O presidente não deve ter lido tais projetos.

O PL nº 5.080: 1) institui os "atos de constrição preparatória e provisória" a serem "praticados pela Fazenda Pública credora", antes do ajuizamento da execução fiscal, ou seja, a penhora administrativa, assim invadindo a esfera de competência constitucional do Judiciário e propiciando, sobretudo nos municípios, a violência contra os adversários dos governantes; 2) determina o protesto da certidão de dívida ativa, o que é desnecessário, pois esse título já é mais privilegiado que os títulos protestados, além de representar mais um passo burocrático e mais um ônus para o contribuinte; 3) estabelece a responsabilidade subsidiária pela dívida em cobrança de quem, na pessoa jurídica, omitir ou retardar a prestação de informações ("dedurar") sobre o paradeiro e o patrimônio do devedor, violando, assim, as garantias constitucionais à inviolabilidade da intimidade e à livre manifestação do pensamento, que envolve o direito ao silêncio; 4) prevê a criação de cargos de "Oficiais da Fazenda Pública" ? certamente milhares ?, com "as mesmas prerrogativas" atribuídas, pela lei, aos oficiais de justiça, mas sem fixar os respectivos vencimentos e sem indicar a fonte dos recursos para custeá-los, o que fere a Lei de Responsabilidade Fiscal; e 5) com agressão à garantia constitucional, à inviolabilidade da intimidade, da vida privada e do sigilo de dados, autoriza o Executivo a criar o Sistema Nacional de Informações Patrimoniais dos Contribuintes (SNIPC), um verdadeiro "SNI fiscal", para organizar "o acesso eletrônico às bases de informação patrimonial de contribuintes, contemplando informações sobre o patrimônio, os rendimentos e os endereços, entre outras".

Em 294 normas, o Projeto de Lei nº 5.082/09 institui a "transação tributária" como meio de extinção do crédito tributário, muito embora o parcelamento do débito, em condições gerais preestabelecidas, sempre tenha correspondido à espécie de que trata o artigo 171 do Código Tributário Nacional. A transação, como proposta ? uma negociação pessoal entre o contribuinte e os servidores fazendários ?, presta-se a controvérsias sobre a lisura do procedimento, expondo estes a críticas e a suspeitas, ainda que improcedentes e injustas, seja quando o pleito for indeferido, seja quando for atendido. E será um estímulo ao tráfico de influência.

Por sua vez, o PLC nº 469/09 inclui no Código Tributário Nacional o artigo 122-A, a fim de determinar "aos representantes de pessoas físicas e aos diretores, gerentes ou representantes, ainda que de fato, de pessoas jurídicas" que "atuem diligentemente para o cumprimento das obrigações tributárias das entidades que representam", atribuindo-lhes, ainda, o "dever de diligência", para "fazer todo o necessário para o cumprimento das obrigações tributárias, inclusive privilegiar o pagamento de tributos em detrimento de outras despesas ou débitos". Mediante a inclusão do inciso VIII no artigo 134, é estabelecida a responsabilidade solidária do administrador ou gestor que "deixar de provar que empregou, no exercício de sua atividade, o cuidado e a diligência que se costuma dispensar à administração de negócios, cumprindo com o dever de diligência que a lei lhe incumbe". Em síntese, obriga os contribuintes a uma romântica fidelidade fiscal.

Ora, é natural que os órgãos fazendários se preocupem com a colossal quantidade de inscrições no Cadastro da Dívida Ativa da União (7.300.000) e com a soma astronômica em cobrança (R$ 1,5 trilhão) ? eram, há 20 anos, apenas 45 mil inscrições, no valor global de R$ 2,8 bilhões ?, mas essa anômala situação decorre: da elevada carga tributária (40% do PIB); das multas estabelecidas antes do Plano Real, nos porcentuais de 50%, 100% e 150% sobre o valor do tributo, mas que hoje, em face da estabilização da nossa moeda, se tornaram escorchantes; das deficiências dos procedimentos de arrecadação e do abandono da cobrança amigável, pela qual cerca de 30% dos débitos eram liquidados à vista ou em parcelas, conforme a antiga experiência; e do calote nos créditos dos contribuintes contra o erário (precatórios, créditos do Imposto sobre Produtos Industrializados e da Cofins, lenta restituição do Imposto de Renda, etc.).

Tudo isso exigiria um outro pacote, mas para reduzir a carga tributária e as multas fiscais, aperfeiçoar o processo de cobrança e arrecadação dos tributos, retomar a cobrança amigável da dívida ativa e responsabilizar as autoridades governamentais que não promovam a liquidação integral dos precatórios e outras obrigações da Fazenda perante as pessoas físicas e jurídicas.

O certo é que não se justifica, de modo algum, a adoção de procedimentos inquisitoriais que a Constituição não admite, o regime democrático não autoriza e a sociedade não tolera. Resta aos contribuintes confiar no Congresso Nacional, que certamente rejeitará o pacote fiscal de Drácon.
Cid Heraclito de Queiroz, advogado, foi procurador-geral da Fazenda Nacional

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