quarta-feira, fevereiro 10, 2010

RUY CASTRO

Fim da mistura fina


FOLHA DE SÃO PAULO - 10/02/2010


RIO DE JANEIRO - A exemplo do presidente Lula, ainda não li o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), lançado pelo próprio presidente. Antes disso, preciso terminar minhas coleções de Balzac e Dickens, obras que, em volume e magnitude, competem com o dito programa e exigem uma vida para ser apreciadas.
Mas amigos me alertam para um item do PNDH-3 de interesse para nós, fãs do clássico musical da Broadway "Show Boat", de 1927. Nele, uma mulher ostensivamente clara, Julie LaVerne, é punida por ter "sangue negro" e ser casada com um branco. O que é crime no Mississipi na época em que se passa a história, fins do século 19.
Numa passagem emocionante, o marido de Julie, ator como ela, ao saber que o xerife está a caminho do "barco das ilusões" para prendê-los, dá um talho com canivete no dedo da mulher e chupa-lhe o sangue na frente da trupe, para mostrar que agora também tem "sangue negro" no corpo. Mas não adianta. Os americanos queriam brancos puros, negros puros, e cada qual em seu galho, sem bagunça.
Essa monstruosidade era fruto da chamada "one-drop rule", a "regra da gota única", que classificava como negros os mestiços afro-americanos de modo geral -não importava o tom da pele, clara ou escura- e os sujeitavam por igual à discriminação. Os pais dessa lei eram os racistas mais hidrófobos dos EUA, a Ku-Klux-Klan e as Filhas da Revolução Americana.
Pois parece que o PNDH-3 também pretende resumir a nossa mestiçagem, feita de mulatos, caboclos, cafuzos e outras misturas finas, a uma só categoria: negros. O pretexto é o de "ampliar os benefícios" estendidos a estes. Oba! Branco de araque, como todo brasileiro, devo ter litros de sangue negro nas veias. Donde, se essa medida pega, vou correndo alterar meus documentos e me candidatar aos benefícios.

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