terça-feira, fevereiro 02, 2010

MERVAL PEREIRA

Humanizar o capitalismo

O GLOBO - 02/02/10


Desde a montagem da programação do 40oFórum Econômico Mundial ficou clara a intenção de seus organizadores de mostrar a face humanizada do capitalismo, ainda envolvido na maior crise desde 1929. A preocupação em mesclar assuntos técnicos com debates sobre felicidade, boa alimentação ou aperfeiçoamento através da arte, que sempre esteve presente na agenda do Fórum, este ano ficou mais evidente ainda.

O próprio mote do encontro — “repensar, redesenhar, reconstruir” — fez com que a tragédia provocada pelo terremoto no Haiti ganhasse relevância no encontro, e um dos motores do Fórum Econômico, que é a troca de informações entre os participantes, em encontros de negócios, ou simples conversas que podem vir a gerar negócios mais adiante, foi usado para estimular não doações, mas investimentos no Haiti.

O anúncio de que a Fundação Melinda e Bill Gates vai investir nada menos de US$ 10 bilhões de dólares nos próximos dez anos para uma ampla campanha internacional de vacinação ganhou o maior destaque nos noticiários internos do Fórum, como a ressaltar o objetivo de “repensar, redesenhar, reconstruir” o mundo a partir de suas mazelas.

Como o próprio comunicado oficial do Fórum destacou, “reconstruir o Haiti vai fazer o mundo mais próspero, vacinação de crianças no mundo em desenvolvimento significa um mundo mais saudável”.

O Fórum destacou também a inter-relação entre a luta contra o desemprego, contra a miséria global e a favor da preservação do meio ambiente como “essencial” para garantir a recuperação da economia a longo prazo e evitar futuras crises.

A escolha do presidente Lula para ser a primeira personalidade a receber o prêmio de “Estadista Global” tem a ver com essa preocupação social do Fórum Econômico, que, desse ponto de vista, tem demonstrado que é mais capaz de propiciar um ambiente de debate em busca de uma redefinição do capitalismo internacional do que o Fórum Social.

Criado em 2001 para se contrapor a Davos e mostrar que “um outro mundo é possível”, nem todos os anos consegue realizar o encontro, e quando o faz se divide não apenas em diversos lugares, mas em diversas linhagens ideológicas.

Essa dispersão de energia e vontades já foi criticada até mesmo pelo presidente Lula, que pediu mais foco nos temas a serem discutidos no Fórum Social, mas sem êxito.

Em Davos, predominou esse ano o sentimento de que a recuperação ainda é frágil, e que a prosperidade tem que ser reconstruída em cima de valores.

Até mesmo decisões técnicas, como a retirada dos subsídios e dos pacotes de estímulo à economia pelos governos, terão que se submeter à percepção dos cidadãos, como observou bem Christine Lagarde, ministra da Economia, Indústria e Emprego da França.

Ao comentar os temores do diretor-geral do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Kahn, quanto ao momento certo de retirar tais subsídios — “Se sairmos muito tarde, a dívida dos governos pode ficar insustentável, mas se sairmos muito cedo, a crise pode se revigorar ” —, a ministra francesa acrescentou que os líderes terão também que lidar com “a frustração dos seus cidadãos durante esse processo”.

A situação nos Estados Unidos é exemplar dessa ambiguidade da crise. Mesmo com uma melhoria nos números oficiais da economia, um em cada cinco americanos entre 25 e 54 anos está desempregado e, mesmo com a recuperação, um em sete ou oito desses cidadãos continuará desempregado.

O que fez o diretor do C o n s e l h o N a c i o n a l d e E c o n o m i a d o s E s t a d o s Unidos, Larry Summers, definir a situação como sendo de “uma melhora estatística, mas uma recessão humana”.

O fato de que a recuperação econômica está sendo mais rápida no mundo em desenvolvimento, enquanto que nos Estados Unidos e na Europa ela se dá de maneira mais lenta e difícil, é outro fator a desafiar os “senhores do Universo”.

Mostra como a atual crise é distinta das anteriores, e que o mundo necessita abrir espaços para além do G-8 nos organismos internacionais de decisão.

Ao mesmo tempo que a recuperação econômica é o objetivo geral, houve um consenso em torno de como alcançá-la: o novo modelo de crescimento é de baixo carbono, declarou Dominique Strauss-Kahn, diretor-geral do FMI, ao anunciar um plano de US$ 100 bilhões para promover o “crescimento verde”.

O tom moralista das conclusões dos debates pode ser resumido pela declaração de Rowan D. Williams, arcebispo de Canterbury, no Reino Unido, destacada no site oficial do Fórum Econômico Mundial.

Ele exortou os participantes do Fórum a assumirem responsabilidade coletiva para o futuro sendo individualmente responsáveis hoje “Responsabilidade para o futuro significa ser responsável com uma visão de humanidade que nos estimula e engrandece”.

O presidente do Deutsch Bank, Joseph Ackermann, definiu bem a preocupação generalizada com a perda de confiança do cidadão no sistema financeiro: “Se você perde a confiança da sociedade, não pode responder em termos técnicos, mas em termos morais”.

Mesmo assim, Ackermann foi um dos grandes banqueiros presentes ao encontro que se colocaram contra uma nova regulação do sistema financeiro internacional, contrapondo-se à proposta dos líderes políticos, especialmente o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama.

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